Apostilas sobre Marie Curie, Lise Meitner e a radioatividade.
Quando ainda morava na Europa, Dona Fifi teve oportunidade de conhecer Lise Meitner, física austríaca que trabalhou com materiais radioativos e explicou a fissão nuclear. Nessas apostilas, nossa querida mestra conta essas histórias e aproveita para nos ensinar um pouco de física nuclear.
Duas grandes damas da Física.
Nessas apostilas pretendo falar do trabalho e da vida de duas grandes cientistas do finado século vinte: Maria Sklodowska Curie e Lise Meiner. A vida dessas duas mulheres teve algumas coisas em comum mas, por um lado infeliz, muita diversidade. Maria Curie foi agraciada com dois prêmios Nobel. Lise Meitner, apesar de merecedora, não ganhou o cobiçado prêmio, em circunstâncias suspeitas, como veremos.
Como as duas se destacaram por seus trabalhos em física nuclear, aproveito a desculpa para empurrar um pouco dessa matéria por sua goela abaixo. Hoje, esse é um tema meio esquecido. As bombas nucleares pararam de explodir e os reatores só de vez em quando são notícia. Mas, no início do século 20 e, principalmente, nas décadas de 30 e 40, foram assunto de grande interesse popular.
Não tenho a menor intenção de dizer como se faz uma bomba atômica, mas, em um breve futuro, falarei sobre o uso pacífico das técnicas nucleares. Um ótimo assunto, por exemplo, é a técnica de datação, geológica ou biológica, usando isótopos radioativos. Nessa ocasião, o que vamos ver nas presentes apostilas será de muita utilidade.
Maria Curie e a radioatividade natural.
O físico francês Henri Becquerel descobriu, acidentalmente, em 1896, que o minério uranita (sulfato de urânio e potássio) emitia algum tipo de radiação. Colocando perto do minério uma placa fotográfica, o filme era queimado, mesmo no escuro. Esse fenômeno ficou conhecido como “radioatividade” e, tão logo foi descoberto, passou a ser objeto de estudo de muitos físicos e químicos.
Um deles, ou melhor, uma delas, foi uma jovem polonesa chamada Maria Sklodowska, casada com o físico francês Pierre Curie. Todo mundo achava que o urânio era o responsável pela radiotividade da uranita. Afinal, tanto o potássio quanto o enxôfre já tinham sido exaustivamente estudados e nada tinham de especial. Por essa razão, Maria Curie passou a purificar o minério para separar o urânio do resto. E foi aí que descobriu algo inesperado: o urânio purificado era muito menos radioativo que o resto que sobrava. A radioatividade, ao que parecia, devia vir de algo que fazia parte do minério, além do urânio, do potássio e do enxôfre. Devia ser uma impureza, presente em pequena quantidade nas amostras.
Se a fonte da radioatividade era uma impureza, tornava-se necessário conseguir uma grande quantidade do minério para tentar separá-la do resto. Esse minério uranita era retirado de minas austríacas da região da Boêmia. A uranita era separada para uso na indústria de vidros e o que sobrava, o resíduo, era jogado no lixo. Que sorte: era justamente esse resíduo que interessava a Maria Curie. O governo austríaco concordou em fornecer uma tonelada desse material ao casal Curie que, tão logo o recebeu, deu início à penosa tarefa de separar a impureza. Como não sabia que impureza era essa, o programa consistia em separar quimicamente os elementos conhecidos e monitorar a radioatividade de cada componente. Depois de muito suor, Maria Curie viu que tinha isolado um material extramente radioativo com propriedade químicas próprias, diferentes daquelas dos demais compostos. A esse novo material ela deu o nome de polônio, em homenagem a seu país natal.
Com mais trabalho ainda, separou um novo elemento, ainda mais radioativo que o polônio, e milhões de vezes mais radioativo que o urânio, a que chamou, dessa vez pouco inspiradamente, de rádio.
Tudo isso aconteceu em uma época em que o átomo era motivo de disputa. Alguns não acreditavam nem que ele existisse, outros achavam que era uma partícula indivisível. Com suas descobertas, Maria e Pierre Curie demonstravam que o átomo era muito mais complexo do que se imaginava até então. Essas pesquisas lhe deram o Prêmio Nobel de Química de 1903 e transformou a polonesa em uma celebridade mundial. Sobre isso, falarei na próxima apostila.
Maria e Pierre Curie.
Não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Maria Curie. Quando estive, pela primeira vez, na Europa ela já era uma celebridade, viúva, duas vezes prêmio Nobel, e dificilmente receberia uma quase adolescente para conversa fiada. Na verdade, faleceu pouco depois de minha chegada ao continente europeu.
Não há a menor dúvida, porém, de que se tratava de uma grande mulher. Nasceu em Varsóvia, em 1867, e como, desde cedo, já decidira estudar física, teve de se mudar para a França pois as universidades polonesas não aceitavam estudantes do melhor sexo. Em Paris conheceu Pierre Curie, com quem casou e teve duas filhas, Irene e Eva. Pierre foi seu parceiro de pesquisas até morrer, em um infeliz acidente , em 1906.
As descobertas sobre a radioatividade transformaram Maria Curie em celebridade mundial. Os jornais falavam dela como uma heroína ou uma santa. Todos conheciam e admiravam Madame Curie, sem saber que ela detestava essa denominação machista, como se não tivesse nome próprio. Certamente, ela merecia toda essa admiração, pois era uma pessoa desprendida de interesses materiais, toda dedicada a seu trabalho. Durante a primeira grande guerra, Maria e Irene organizaram um serviço para atender aos soldados feridos, utilizando os raios-X. Usou o dinheiro ganho com seus prêmios Nobel para criar um centro de pesquisas, o Instituto do Rádio, dedicado à pesquisa do uso de técnicas nucleares no combate ao câncer.
Mas, mexer com material radioativo sempre foi e ainda é um grande risco. Maria Curie contraiu leucemia, certamente causada pela prolongada exposição à radiação penetrante oriunda dos materiais que estudava. Morreu dessa terrível doença em 1934. Algum tempo depois, examinando seus livros e cadernos de anotações, os técnicos verificaram que estavam fortemente contaminados. Colocando filmes sobre esses papéis, chegaram até a obter impressões digitais da cientista, nos locais em que ela encostara os dedos.
O elemento transurânico de número atômico 96 não existe naturalmente mas pode ser fabricado em reatores nucleares. Ao ser descoberto, recebeu o nome de Curio, em homenagem à grande polonesa.
Nas próximas apostilas, vamos falar um pouco da física e química da radioatividade. Mas, antes, preciso explicar o que são isótopos.
Os isótopos e a estabilidade do núcleo.
Como toda criança sabe, um átomo é constituído de um núcleo onde moram os prótons, cargas elétricas positivas, e os neutrons, que são eletricamente neutros, como o nome já diz. Fora do núcleo, longe dele, moram os elétrons, cargas elétricas negativas de massa minúscula. Sendo o número de prótons igual ao de elétrons, um átomo normal tem carga nula.
Saiba que detesto figuras como essa ao lado que pretendem mostrar um átomo. Esse tipo de figura é um desastre, completamente errada. Para começar, a escala não corresponde à realidade: se o núcleo tivesse o tamanho mostrado nessa figura, os elétrons estariam tão distantes que sairiam da tela de seu computador. Além disso, nenhum desenho pode mostrar um próton ou um elétron pois eles não têm forma definida. Mas, enfim, rendo-me ao costume dos livros e digo que o desenho da parte de baixo pretende mostrar o núcleo de um átomo de carbono (me recuso a querer mostrar os elétrons). O átomo normal de carbono tem um núcleo com 6 prótons e 6 neutrons. Mas, nem todo carbono é assim.
Para começar, temos uma dificuldade. Se os prótons são cargas positivas e estão espremidos no núcleo, como é que as forças de repulsão entre eles (a força de Coulomb) não arrebenta o núcleo? A força de atração gravitacional é ridiculamente pequena para contrabalançar essa repulsão. Pois bem, acontece que existe outra força, a “força nuclear”, também chamada pleonasticamente de “força forte”, que atúa tanto nos prótons quanto nos neutrons dentro do núcleo, e que é fortemente atrativa, desde que as partículas estejam bem próximas umas das outras. Normalmente, em um núcleo, essas forças contrabalançam as forças elétricas de repulsão e o núcleo fica estável. Na próxima apostila veremos que essa estabilidade nem sempre é suficiente para segurar o núcleo inteiro.
Antes, porém, é preciso que você conheça dois números importantes. O primeiro, chamado de número atômico e representado pela letra Z, é o número de prótons no núcleo. Portanto, o número atômico do carbono é 6, como vimos acima. O outro é o número total de partículas no núcleo, prótons mais neutrons, chamado de número de massa e representado pela letra A. Para o carbono, A=12. O símbolo de um elemento costuma ser apresentado com o número atômico de um lado e o número de massa do outro, um em cima e outro em baixo. O carbono, portanto, é 12C6.
Quem determina as propriedades químicas do elemento é o número atômico. Portanto, todo átomo de carbono tem de ter Z=6, senão não é carbono. No entanto, nem todo átomo de carbono tem A=12. Isto é, existem átomos de carbono que têm mais de 6 neutrons no núcleo. Átomos que têm o mesmo número atômico Z e diferentes números de massa A, são chamados de isótopos. Esse nome indica que esses átomos ocupam a mesma posição na tabela periódica dos elementos, já que pertencem ao mesmo elemento. Daí o nome – “isos” = mesmo, “topos” = lugar. Todo elemento químico tem isótopos, só que uns são muito mais frequentes na natureza que outros. O carbono com A=12 (ou carbono-12) é o isótopo natural do carbono: 99,9% dos átomos de carbono na Terra são carbono-12. Mas, uma fração pequenininha dos átomos de carbono tem dois neutrons a mais no núcleo. É o chamado carbono-14, importante na datação de material biológico, assunto muito interessante do qual tratarei em outra ocasião.
A seguir, vamos ver que muitos dos isótopos dos elementos são naturalmente radioativos. E veremos também que os elementos muito pesados, com muitos prótons e neutrons no núcleo, são todos radioativos. E saberemos a razão para isso.
A radioatividade e o decaimento do núcleo.
Que radiação é essa que é emitida pelos materiais radioativos? Nos primeiros tempos de Maria Curie ninguém sabia ao certo mas, em 1899, o jovem físico inglês Ernest Rutherford mostrou que a radiação provém do núcleo e que as substâncias radioativas emitem basicamente três tipos de radiação.
Partículas alfa. Uma partícula alfa é composta de dois prótons e dois neutrons. Para todos os efeitos, uma alfa é um núcleo do elemento hélio. Isto é, podemos representar uma partícula alfa como 4He2. Como uma alfa tem carga +2 (dois prótons) e um total de 4 partículas (2 prótons + 2 neutrons), um núcleo que cospe (ou emite, se preferir) uma alfa tem seu número atômico diminuído de 2 e seu número de massa diminuído de 4.
Por exemplo, o urânio-238, cujo número atômico é 92, pode emitir uma alfa e virar o núcleo de outro elemento, o tório-234, com número atômico 90. Isso é uma reação nuclear e é escrita como:
2238 U 92 ===> 234 Th 90 + 4 He 2 (alfa).
Examine cuidadosamente essa equação nuclear. Veja que o número de massa do elemento à esquerda (238) é igual à soma dos números de massa dos elementos à direita (234 + 4). O mesmo acontece com os números atômicos (92 = 90 + 2). Se não for assim, a equação está errada.
Uma partícula alfa é tão pesada (relativamente, é claro) que não penetra em nossa pele. No entanto, quem respira um gás radioativo que emite alfas está ferrado. Já estando dentro do pulmão a alfa faz um estrago danado.
Partículas beta. A radiação beta se constitui de elétrons emitidos pelo núcleo. Elétrons? E um núcleo tem elétrons? Não tem elétrons livres, mas, um neutron, por razões que não precisamos explicar agora, pode virar um próton cuspindo um elétron para fora do núcleo. A carga elétrica total, dessa maneira, é mantida. Como o núcleo perde uma carga negativa (a beta, sendo um elétron, tem carga -1), seu número atômico cresce de uma unidade, pois ganhou um próton a mais. E como a beta é muito levezinha, o número de massa do núcleo fica o mesmo de antes. Veja o exemplo de um núcleo de cobalto-60 virando níquel-60 depois de emitir uma beta:
Raios gama. A radiação gama é a nossa velha conhecida radiação eletromagnética, da mesma família que a luz visível, só que muito mais energética e penetrante. É a mais perigosa das três radiações que podem ser emitidas pelos materiais radioativos. Mas, como não tem carga nem massa (só energia, e muita) não muda nem o número atômico Z nem o número de massa A do núcleo radioativo emitente.
Como vimos antes, um núcleo pesado , com muitos prótons e neutrons, tende a ser instável. Na tentativa de recuperar sua estabilidade, o núcleo emite alfas ou betas e perde a identidade, coitado, vira outro elemento. Esse processo pode ser rápido ou lento, dependendo da estabilidade do núcleo. É aí que entra outro conceito importante: o tempo de vida média do núcleo. É muito fácil entender o que esse tempo significa. Suponha que você tem uma amostra com 100 átomos de um elemento radioativo X. E digamos que, depois de 1 hora, metade desses átomos tenham se transformado, por radioatividade, em átomos de outro elemento Y. Pois bem, diremos que o tempo de vida médio desse elemento X é 1 hora. Em palavras: o tempo de vida médio de um elemento é o tempo necessário (em média) para que metade de uma amostra desse elemento se transforme em outro por radioatividade. Quando um elemento é muito instável, seu tempo de vida média é curto. Dependendo do isótopo considerado, o tempo de vida médio pode ir de frações de segundo a bilhões de anos. O tempo de vida médio de um elemento estável é infinito por definição. Vamos ilustrar esses fatos com o caminho tortuoso que leva um núcleo de urânio-238 até o rádio-226, elemento descoberto pelo casal Curie.
Acompanhe na figura: o urânio-238, que foi preparado nas fornalhas de uma supernova, chega à Terra e aqui fixa morada. Como seu tempo de vida média é de 4,5 bilhões de anos, ele pode muito bem estar aqui desde que a Terra se formou. A cada 4,5 bilhões de anos, um núcleo desse urânio emite uma alfa e vira um isótopo de tório-234. Observe que 238-4=234 e 92-2=90. Esse tório-234 vive, em média, apenas 24,1 dias, pois logo emite uma beta e vira protactínio-234. Veja que esse protactínio tem o mesmo A do tório de onde veio, mas tem um Z com 1 unidade a mais. Ele vive muito pouco, apenas cerca de 1 minuto. Logo, logo, emite outra beta e volta a ser urânio, só que agora é o urânio-234. Esse vive 245.000 anos mas, acaba emitindo uma alfa e se transformando em outro tório, o tório-230. Que também tem vida longa, agüenta 8.000 anos. Mas, depois emite outra alfa e se transforma no rádio-226, elemento que o casal Curie isolou do resíduo de minérios austríacos.
O processo não pára por aí, pois o rádio ainda é muito radioativo, como Maria Curie descobriu. Depois de outras idas e vindas pela tabela periódica, o núcleo acaba virando um núcleo de chumbo-206 (206Pb82) e, finalmente, encontra a paz. O chumbo-206 é estável e tem vida eterna.
Trajetórias como essa, de um elemento radioativo até alcançar a estabilidade, foram catalogadas pelos físicos e químicos desde os tempos dos Curie e hoje são bem conhecidas. Servem para explicar inúmeros fenômenos que ocorrem nas estrelas e planetas e para medir a idade de rochas e material biológico. Como prometí, em breve contarei essa interessante história.
Uma tarde no laboratório de Lise Meitner e Otto Hahn.
Continuando nosso passeio pelos primórdios da física nuclear topamos, obrigatoriamente, com Lise Meitner. Nascida na Viena de 1878, Lise Meitner, desde novinha se apaixonou pela física assistindo as aulas do grande Ludwig Boltzmann. Fez seu doutoramento mas, quando tentou um posto na universidade, verificou que mulheres não eram aceitas como pesquisadoras.
Quando Boltzmann se suicidou, Lise ficou tão abalada que decidiu deixar a Áustria. Inicialmente, tentou se mudar para Paris, onde pretendia trabalhar com a já famosa Maria Curie, outra de suas admirações. Mas, ao que parece, os Curie só gostavam de trabalhar em família e ela não foi aceita. Mudou-se, então, para Berlim onde, pouco depois, iniciou uma colaboração com o químico Otto Hahn, no Instituto Kaiser Wilhelm, que rendeu muitos frutos e durou mais de 30 anos. Durante a primeira guerra mundial, Lise trabalhou como radiologista em um hospital militar de austríaco. Curiosamente, sua heroína Maria Curie fazia o mesmo no outro lado.
Em 1917, Hahn e Lise descobriram um novo elemento, o proctoactínio. A partir daí, o prestígio dos dois cresceu e Lise Meitner foi nomeada diretora do Departamento de Física do Instituto. Em 1926, ambos estavam na Universidade de Berlim e mantinham intensa colaboração. No início da década de 30, souberam dos experimentos de Fermi em Roma, bombardeando núcleos com neutrons e começaram, juntamente com o químico Fritz Strassmann, a trabalhar nessa nova linha de pesquisa.
Em 1936, visitei Berlim a convite de meu amigo arquiteto Horst Strohmeyer. Lá, uma bela tarde, sabedor de meu interesse pela física, ele me levou a conhecer o laboratório onde Lise Meitner e Otto Hahn pesquisavam a radioatividade. Lise foi simpática mas retraída e quase não conversamos. Mas, Hahn revelou-se um sujeito falante e bem-humorado, dedicando mais de duas horas a nos explicar seu trabalho e dar suas opiniões sobre a situação política da Alemanha.
Por várias vezes, deixou clara sua aversão a Hitler e seus capangas nazistas. Achei até curioso pois alguns assistentes do laboratório eram visivelmente adeptos do nazismo, alguns até ostentando suásticas nas camisas. Mas, isso não impediu Hahn de falar o que pensava. Falou um pouco do Brasil e de Villa-Lobos, que admirava e do qual conhecia algumas Bachianas. Combinamos nos encontrar novamente para uma pequena sessão musical mas isso nunca aconteceu.
Do ponto de vista profissional, achei interessante a simplicidade do equipamento que Lise Meitner usava. Praticamente, cabia todo em uma bancada. Poucos anos depois, impulsionada pelas descobertas de Meitner e Hahn, além de outros como Fermi e Bohr, a física nuclear virou assunto estratégico, e os laboratórios modestos foram substituídos por gigantescos reatores. Sem falar nas fábricas de bombas que surgiram em vários países.
Nos anos seguintes à minha visita, a situação de Lise Meitner em Berlim ficou muito perigosa e ela teve de fugir, em 1938. Ficando lá acabaria, certamente, em um dos fornos crematórios de Hitler. Depois de passar pela Holanda, estabeleceu-se na Suécia. Já estava lá quando aconteceu o fato científico mais marcante de sua vida, cheio de lances dramáticos e implicações políticas e militares. Vou contar essa história mas, antes, quero preparar o terreno descrevendo o trabalho de Lise e Hahn com os materiais radioativos.
Bombardeando núcleos com neutrons.
Partículas alfa são boas para estudar um átomo. Ernest Rutherford usou-as para chegar ao seu modelo de átomo que deu origem a essas ridículas figurinhas que vemos hoje. Mas, para estudar um núcleo, as alfas não são a melhor opção. São pesadonas e, o que é pior, têm carga elétrica positiva. Como qualquer núcleo também tem carga positiva, se a alfa quiser se aproximar dele vai sofrer uma tremenda repulsão e ser desviada antes de chegar muito perto.
No início dos anos 30, o grande físico italiano Enrico Fermi teve a idéia de usar os neutrons, que tinham acabado de aparecer na cena da física, como projéteis para penetrar nos núcleos e fornecer informações do que se passa lá dentro. Neutrons são neutros, logo não sofrem da mesma rejeição que as alfas, por parte dos núcleos. A única desvantagem é que as alfas são mais fáceis de serem obtidas, usando materiais radioativos. Para obter neutrons, Fermi usava as próprias partículas alfa incidindo sobre um filme de berílio. O berílio, por alguma razão que não nos interessa, ao ser atingido por alfas, emite neutrons.
Bombardeando núcleos de urânio com neutrons, Fermi achou que o urânio se transformava em algum outro elemento mais pesado, um “transurânico”. Lise Meitner, Otto Hahn e Fritz Strassmann, na Alemanha, se interessaram imediatamente por esses resultados e resolveram tentar descobrir que elementos eram esses.
Nos primeiros anos, o resultado das pesquisa do trio confirmava as observações de Fermi. Nesse estudo, Lise Meitner e os dois químicos conseguiram fabricar alguns transurânicos. Conseguiram também isolar um novo elemento, o proctoactínio, trabalho que deu muito prestígio ao grupo.
Os núcleos bombardeados pareciam ficar extremamente instáveis, emitindo uma verdadeira cascata de partículas alfa e beta e se transformado seguidamente em outros tipos de núcleos. Com as teorias aceitas na época, Lise Meitner tentava justificar toda essa atividade nuclear mas os modelos estavam ficando tão complexos que passaram a ser suspeitos. Em um deles, por exemplo, a sequência de atividade de um núcleo de urânio, depois de capturar um neutron, parecia ser a seguinte:
Que teorias aceitas eram essas? O modelo mais popular para explicar o comportamento de um núcleo era o modelo de Bohr, chamado “modelo da gota líquida”. Segundo Bohr, um núcleo tinha propriedades que pareciam as propriedades de uma gota de líquido, com tensão superficial e tudo mais. Por esse modelo, quando uma partícula qualquer entra no núcleo as colisões internas da partícula que entra com as que já estão dentro (prótons e neutrons), faz com que o núcleo fique excitado, o que me parece normal. Nesse estado, o núcleo é chamado de “núcleo composto” e fica parecendo uma gota de água aquecida, próxima da fervura. Quando a excitação é muito forte, o núcleo composto precisa “cuspir” alguma partícula (alfas, betas, gamas ou mesmo neutrons) para recobrar a compostura e se acalmar. Essa cuspida é chamada de “decaimento” do núcleo.
Pois, como você vê na figura, o núcleo composto de urânio tinha de sofrer um monte de decaimentos até atingir a calma. Lise Meitner desconfiava que tanta instabilidade não podia ser causada pelo tímido neutron que penetrava no núcleo. Algo diferente poderia estar acontecendo.
A coisa estava nesse pé, em 1938, quando Lise teve de fugir da Alemanha. Hahn e Strassmann continuaram os experimentos e, sempre que tinham algum novo resultado, enviavam uma carta a Lise, que já estava na Suécia. Tudo secretamente, pois se os nazistas descobrissem que os dois estavam colaborando com uma judia, o laboratório poderia até ser fechado.
Em um desses experimentos, eles pensaram que o núcleo de urânio emitia duas partículas alfa, ao receber o neutron. Como 92 – 2×2 = 88, o urânio estaria se transformando no rádio, o tal elemento descoberto por Maria Curie. Essa explicação não foi aceita por Lise Meitner: o neutron não podia ter energia suficiente para arrancar duas alfas do núcleo. Escreveu de volta sugerindo que os dois químicos fizessem mais medidas para identificar melhor os produtos da reação. Foi o que eles fizeram e o resultado foi ainda mais estranho. Um dos elementos que parecia surgir depois da reação de captura do neutron pelo urânio era o bário, cujo número atômico é ainda menor que o do rádio. O bário tem número atômico 56; para que um núcleo de urânio virasse bário precisaria emitir um montão de alfas – coisa ainda mais improvável.
A carta de Hahn relatando esse inexplicável resultado chegou a Lise em Dezembro de 1938. Ela estava em Gotemburgo, na Suécia, onde passava o natal com seu sobrinho Otto Frisch, também físico e também fugido dos nazistas. Os dois discutiram o relato da carta de Hahn. Frisch, inicialmente, achou que devia haver algum erro experimental, mas Lise Meitner descartou essa hipótese pois conhecia de perto a qualidade do trabalho dos dois químicos.
Logo, logo, desconfiaram que a única explicação era admitir que o núcleo de urânio estava se partindo em pedaços, um deles sendo um núcleo de bário. Como o neutron não tem energia para espatifar um núcleo, como uma bala espatifa um tijolo, o processo deveria ser diferente. Imediatamente, começaram a fazer cálculos usando o modelo da gota líquida de Bohr. Imaginaram que o neutron desencadearia uma vibração interna na gota (isto é, no núcleo), esticando e afinando até que acabaria se partindo em dois ou mais pedaços. Lise sabia de cór todos os números e fórmulas que precisava para ajustar o modelo de Bohr ao processo que estava considerando. Calculou, rapidamente, a energia liberada no processo de quebra do núcleo, usando a famosa equação de Einstein, E = m c2, e verificou que essa energia deveria ser muito grande. Concluiu, também, que pelos menos dois neutrons seriam ejetados e que, se um dos pedaços era o bário, o outro deveria ser o kriptônio, segundo a reação:
Otto Frisch deu o nome de “fissão nuclear” a esse processo, em analogia ao conhecido processo de fissão celular. Logo depois, Frisch voltou à Dinamarca e informou Bohr desses resultados. A partir daí, surgiram inúmeros trabalhos, feitos em todo o mundo, confirmando os resultados da dupla alemã e a explicação de Lise Meitner e seu sobrinho Otto Frisch. Hahn e Strassmann escreveram um artigo relatando sua experiência e publicaram na revista alemã Die Naturwissenschaften (que nome!). Lise Meitner, sendo judia, não podia aparecer como co-autora, obviamente, para não prejudicar os colegas alemães. Ela e Otto Frisch publicaram outro artigo com o modelo teórico que saiu na revista Nature. Os dois artigos apareceram quase simultaneamente.
A partir desse momento, a coisa se complicou, como contarei na próxima apostila.
Lise Meitner, a fissão nuclear e o prêmio Nobel.
As descobertas de Otto Hahn e Fritz Strassmann, juntamente com a explicação teórica de Lise Meitner e Otto Frisch causaram imediata sensação no mundo científico mas, a partir desse ponto, a coisa se complicou. Para começar, o potencial militar da fissão nuclear fez com que o tema passasse a ser matéria de sensibilidade estratégica. Tanto os aliados quanto os alemães logo vislumbraram a possibilidade de fazer uma bomba atômica aproveitando a enorme energia liberada no processo. Essa história da bomba eu não pretendo contar. Vou agora relatar meu ponto de vista sobre o que aconteceu com Lise Meitner, após a publicaçào de seu modelo teórico.
A colaboraçào entre Lise e Otto Hahn foi ocultada com a desculpa de não por em perigo os cientistas alemães e seu laboratório em Berlim. Mas, segundo dizem alguns biógrafos, parece que Otto Hahn começou a acreditar que só ele, com alguma ajuda de Strassmann, tinha descoberto e explicado a fissão nuclear. Segundo essa versão, ele teria afirmado que o trabalho foi só de química, a física não servira para nada e até atrapalhou a pesquisa. Talvez ele tenha mesmo dito essas coisas, embora eu ache difícil de acreditar que o sujeito simpático que conheci em Berlim fosse tão canalha. Além disso, mesmo depois da guerra, até morrerem em 1968, quase ao mesmo tempo, Lise e Otto se corresponderam cordialmente e se encontraram várias vezes sem sinal de rancor entre eles.
Imperdoável, porém, foi a decisão dos suecos de conceder o prêmio Nobel apenas a Otto Hahn. E tem mais, esse prêmio foi dado em 1945, depois da guerra, depois da bomba de Hiroshima e depois do holocausto. A desculpa de não provocar os nazistas já não valia. Mesmo assim, Lise Meitner, Fritz Strassmann e Otto Frisch ficaram chupando o dedo.
Durante a guerra, Lise Meitner foi convidada pelos americanos para participar do projeto de fabricação da bomba atômica. Eu, no lugar dela, teria ido. Mas, Lise era pacifista e não aceitou o convite. Depois da guerra, seu valor foi reconhecido e ela ganhou vários prêmio importantes, como o prêmio Fermi, a medalha Max Planck e a medalha Leibnitz. Em 1992, o elemento 109, fabricado em reatores nucleares, foi batisado de Meitnério (Mt). Lise Meitner morreu em 1968, na Inglaterra, com quase 90 anos.