Origens da Humanidade
De onde viemos nós, os auto-denominados homens sábios sábios?
No dia 29 de novembro de 1859 foi publicado o célebre livro “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin. Em todo o mundo civilizado, celebram-se os 150 anos do surgimento desse extraordinário livro que explica os mecanismos que a natureza usa para gerar, manter e extinguir espécies. Inclusive a nossa, pomposamente chamada de “homo sapiens sapiens”.
Nós também queremos celebrar esse aniversário e estamos fazendo esse breve relato sobre o trabalho e as realizações do pessoal que estuda nossas origens, de onde viemos e como chegamos até aqui onde estamos. São pessoas que enfrentam enormes dificuldades, coletando e classificando fósseis, muitas vezes em lugares pouco confortáveis, tanto no clima quanto na política. Relíquias desse tipo não costumam ser achadas nas cidades grandes. Mas, às vezes, são. O asfalto usado para pavimentar as ruas podem conter fósseis. Mas, o usual é que os fósseis mais interessantes estejam em locais de difícil acesso, na África ou na Ásia.
O trabalho é árduo mas a satisfação de descobrir sinais de nossos antepassados distantes no tempo compensa com folga as agruras da pesquisa. E são algumas dessas descobertas que vamos descrever nos capítulos que se seguem.
O que é mesmo um fóssil?
Quem vê aqueles enormes esqueletos de dinossauros nos museus de história natural pode pensar que foram ossos desencavados e montados para a admiração do público. Só que esses modelos não são de ossos. Na verdade, são peças moldadas de algum material conveniente, talvez gesso, apenas para mostrar como eram os bichos. Dinossauros estão extintos há mais de 60 milhões de anos e nenhum material biológico, mesmo ossos, resiste a tanto tempo. Uma ossada enterrada se esfarela em poucos anos. Depois de algumas centenas de anos, nada resta do material original.
Felizmente, a natureza não deixou na mão os paleontólogos, que são os pesquisadores que vivem estudando esses e outros animais do passado. Em atenção a eles, ela inventou o processo de fossilização. Quando um animal morre, suas partes comíveis são comidas, seja por urubús, hienas ou micróbios. O que resta, por algum tempo, são os ossos, que, como sabemos, são duros de roer. Esses ossos, eventualmente, podem ser enterrados pela movimentação do solo, e se as condições forem propícias, tornarem-se fósseis. Em um dos processos mais comuns, chamado de “permineralização”, o material dos ossos, à medida que vai se esfarelando, é substituído por algum minério em suspensão aquosa que ocupa seu lugar e se solidifica. É como se os ossos dessem lugar a um “molde” mineral, uma cópia dura dos ossos originais. Esse é o fóssil, que perpetua a forma e a aparência do osso que foi deslocado.
Com alguma sorte, o fóssil pode ficar enterrado por milhares ou milhões de anos, sem muitos estragos. Com a erosão do solo e os movimentos da crosta terrestre, o fóssil pode aflorar e atingir a superfície. São essas relíquias do passado que fazem a alegria dos paleontólogos. A maioria desses fósseis tem menos de 600 milhões de anos mas já foram encontrados fósseis de seres unicelulares com até 3,8 bilhões de anos, quase tão antigos quanto a própria Terra.
Por uma questão de rigor, devemos dizer que o termo “fóssil” indica não apenas esses objetos minerais com forma de ossos mas qualquer coisa que reporte ao passado distante de seres biológicos. Por exemplo, insetos encapsulados em resinas vegetais, como aqueles do filme “Parque dos Dinossauros”, são fósseis. Mesmo aqueles rastros de antigas criaturas que passaram pelo chão sagrado da Paraíba há milhões de anos, vistos na foto ao lado, são fósseis. Alguns políticos que perambulam por Brasília também são fósseis, embora, infelizmente, ainda não extintos.
O Cariri, região ao sul do Ceará, é riquissímo em fósseis de vários tipos e tamanhos. Lá foram encontrados até fósseis de pterossauros enormes que voaram pelos céus do Padre Cícero há mais de 100 milhões de anos. Essa foto abaixo mostra uma réplica do pterossauro caririense Anhanguera , que em breve será exibida nos salões da Seara da Ciência.
Mas, nesse nosso relato vamos nos concentrar na busca pelos fósseis de nossos antepassados, os “macaquinhos” que estão dentro ou perto de nossa linha evolutiva. Como vamos ver, o registro fóssil exibe uma evidência veemente dessa nossa ascendência, contrariando quem ainda pensa que já surgimos como somos hoje, falando inglês com o Criador, como nos filmes americanos. Os fósseis mais antigos de primatas, nossa linhagem, datam de pouco mais de 65 milhões de anos. Os macacos só surgiram há uns 35 milhões de anos. E nossos primos, os gorilas e outros macacões, apareceram há uns 20 milhões de anos. Fósseis de hominídeos, espécies mais próximas da nossa, que andavam eretos, surgiram há (apenas) uns 6 milhões de anos. Isto é, a linha evolutiva que chegou ao homo sapiens está bastante clara na história contada pelos fósseis. Na narrativa que se segue, para não ficar o tempo todo usando aspas, vamos chamar o “homo sapiens sapiens”, nossa própria espécie, simplesmente de “humano”. Com essa escolha, nem nossos primos mais próximos, os neandertais (“homo sapiens neanderthalensis”), serão considerados humanos, o que talvez seja até um elogio a eles.
Tendo essa informação como roteiro, vamos começar explicando algumas das técnicas que os paleontólogos (e outros especialistas) usam para extrair o máximo de informação dos fósseis que encontram.
Como trabalham os paleontólogos.
Paleontólogos são os caras que estudam os fósseis. A primeira tarefa de um paleontólogo consiste em achar o fóssil. Depois, ele e seus colegas da mesma área ou de áreas correlatas se dedicam a analizar o fóssil que encontraram. Isto é, vão tentar descobrir a que espécie de animal ou planta o fóssil pertenceu. Vão também querer saber se a espécie ainda existe ou se já está extinta. Também vão tentar descobrir a “idade” do fóssil, isto é, saber quando viveu o animal ou planta que deu origem ao fóssil. Para saber essa idade do fóssil, o método usual consiste em determinar a idade da camada de solo de onde ele foi desenterrado. Em geral, os geólogos podem ter essa informação só estudando a camada em si. As chamadas rochas sedimentares formam sequências de camadas com as mais antigas abaixo das mais recentes.Mas, é muito frequente que seja necessário usar uma técnica dos físicos para achar essa idade, como as técnicas de datação isotópica (ver a Apostila de Dona Fifi sobre a datação isotópica). A técnica de datar pelo Carbono-14 só serve para casos de fósseis muito recentes nos quais algum tecido biológico (contendo carbono) foi preservado. Para fósseis muito antigos, como os fósseis de nossos antepassados de milhões de anos, a datação tem de ser feita em rochas ou sedimentos do local em que o fóssil foi encontrado.
Se o fóssil foi de um antropóide, o paleontólogo vai querer saber se esse animal era um hominídeo. O termo hominídeo serve para designar nossa espécie (homo sapiens) e todas as outras que se separaram dos grandes macacos em um certo estágio da evolução. Mas, nem toda espécie de hominídeo pertence à linha evolutiva que desembocou na nossa espécie. Muitos desses hominídeos pertenciam a espécies que se extinguiram. Na verdade, como veremos mais adiante, a caracterização de um hominídeo como sendo nosso antepassado costuma ser bastante controversa. Para dificultar ainda mais a coisa, os fósseis costumam ser muito precários, às vezes só uma arcada dentária ou um pedaço de crânio. Fica difícil, por exemplo, saber se o hominídeo em questão andava ereto ou não.
Entretanto, se o fóssil for de dentes, fica mais fácil distinguir se veio de um hominídeo ou de um chimpanzé, por exemplo. A arcada dentária de um humano é bem distinta da arcada de um chimpanzé. Nos humanos, ela tem contorno parabólico, enquanto nos chimpanzés tem a forma de um U.
Seres intermediários, nem gente nem macaco, tinham arcadas dentárias com características que misturavam os dois tipos. Na figura ao lado, mostramos arcadas típicas de humanos modernos, de chimpanzés e de um hominídeo da espécie da famosa Lucy, espécie da qual falaremos mais adiante.
O mais frequente é achar apenas um fragmento de fóssil, como um pedaço de mandíbula, de costela ou de algum membro. Nesse caso, o paleontólogo precisa da ajuda de um especialista em anatomia humana e animal para saber que tipo de criatura deu origem ao fóssil encontrado. Nem sempre isso é possível com ampla certeza, a não ser em casos muito raros, como nos fósseis encontrados na Etiópia (Lucy, por exemplo). Para mostrar como o especialista pode distinguir entre fósseis de hominídeos e de chimpanzés, veja na figura abaixo as diferenças entre a forma do crânio de um chimpanzé, de 2 hominídeos e do homo sapiens. Mas, lembre que nem sempre o fóssil corresponde a um crânio completo, em geral é apenas uma pequena parte.
Observe como o crânio do homem de Neandertal e o nosso são muito parecidos. Essa semelhança suscita muita controvérsia, como veremos adiante, acerca da possibilidade dos neandertais terem convivido e talvez até procriado com nossos antepassados. Mas, esse é assunto para um capítulo posterior. A seguir, vamos ver de onde viemos no passado distante.
Somos todos africanos.
Hoje praticamente ninguém duvida que nossos antepassados primordiais surgiram na África. Seja você filho de sueco, xavante ou japonês, um seu tata…tataravô nasceu, viveu e morreu no continente africano.
Como sabemos disso?
Há duas linhas mestras de evidência para essa certeza: os fósseis e a genética. Do lado dos paleontólogos, foi observado que em nenhum lugar do mundo foram encontrados fósseis de hominídeos mais antigos que os africanos. Aliás, a variação na idade dos fósseis já encontrados indica o deslocamento do homo desde sua origem na África, passando depois para a Ásia, a Europa, até, finalmente, chegar à América. O mapa simplificado mostrado abaixo ilustra esse caminho ao longo do tempo. Observe que essas evidências mostram que os humanos chegaram às Américas quase que ao mesmo tempo que chegaram à Europa.
Nem todo mundo aceita essa descrição. Há uma outra versão que afirma que nossos antepassados, os hominídeos que ainda não eram “sapiens”, sairam da África há cerca de 1,8 milhão de anos e se espalharam pelo mundo. A partir de então, foram evoluindo, evoluindo, e deram origem, em todos esses lugares, a outras espécies, inclusive nós e os neandertais. A hipótese ilustrada no mapa acima, chamada de “Saindo da África”, sustenta que o homo sapiens surgiu apenas na África, inicialmente, há cerca de 200.000 anos, e depois saiu de lá e se espalhou pelo mundo. Os outros hominídeos que já habitavam esses lugares fora da África, ou já estavam extintos ou se extinguiram depois que os humanos chegaram, por razões que ainda desconhecemos. Essa explicação, devemos dizer, é a mais aceita hoje em dia pelos cientistas que estudam as origens da humanidade.
Uma linha de pesquisa que favorece a hipótese “Saindo da África” é a genética. Estudos de DNA de várias populações indicam que todos os seres humanos que habitam a Terra hoje são descendentes de gente que surgiu na África. Calcula-se que um pequeno grupo dessas pessoas – talvez menos de 1000 indivíduos – saiu da África há cerca de 50.000 anos e se espalhou pelos outros continentes.
Como é que os geneticistas sabem disso?
Basicamente, eles comparam o DNA das populações em várias partes do mundo. Usam duas linhas de trabalho: uma estuda o DNA do cromossomo Y (masculino) e a outra se concentra no DNA das mitocôndrias. O cromossomo Y é um cromossomo do sexo que só os homens têm. Cada homem tem dois cromossomos do sexo (os “gonossomos”), um X e outro Y. As mulheres têm dois cromossomos X. O cromossomo Y passa de pai para filho na reprodução. Daí, é possível seguir a sequência evolutiva da espécie humana examinando o DNA do cromossomo Y de muitos grupos de homens em todo o planeta. A quantidade de variação no cromossomo Y de um grupo humano dá uma indicação razoável do tempo de formação desse grupo. Quanto mais antigo o grupo, mais variado é o DNA do cromossomo Y das pessoas desse grupo. Com essa lógica, o DNA dos índios da América deve ter bem menos variações que o DNA dos europeus, por exemplo. E o DNA dos europeus deve ser menos variado que o DNA dos africanos. E é isso mesmo o que se observa, como ilustra o gráfico abaixo.
A outra técnica genética para traçar a trajetória dos humanos desde sua origem usa o DNA das mitocôndrias. (Para saber sobre as mitocôncrias, leia a Apostila de Dona Fifi sobre esse fascinante tema.) Esse DNA é próprio da organela e é diferente do DNA nuclear. Como tem poucos nucleotídeos, é mais fácil de rastrear. Além disso, é um DNA que passa somente de mãe para filha. Corroborando o que se aprendeu com o cromossomo Y, verificou-se que o DNA mitocondrial de todas as mulheres desse planeta vem de uma raiz comum, uma “Eva mitocondrial” que viveu na África há uns 150.000 anos. Infelizmente, não temos nenhum retrato dessa Eva para que vocês, mocinhas modernas, peçam a bênção.
Nesse ponto de nosso relato é bom ressaltar que Charles Darwin, em seu livro “Descent of Man” (que poderia muito bem ser “Descent of Woman”), já tinha sugerido que os humanos deveriam ter surgido na África. O argumento usado por ele baseava-se no fato de que é no continente africano onde moram, ainda hoje, nossos parentes mais próximos, os chimpanzés. Os europeus relutaram durante muito tempo a aceitar essa idéia de que os seres humanos teriam surgido em algum outro lugar que não a sagrada Europa. No início do século 20, foram apresentados na Inglaterra restos de um hipotético antepassado do homem, meio gente e meio macaco, achados em Piltdown. Infelizmente para esses orgulhosos “cientistas”, logo foi visto que esse achado era uma fraude grosseira e o sonho britânico de ser o local de origem da humanidade dissolveu-se no ridículo.
A seguir, vamos falar de descobertas mais sérias de fósseis com milhões de anos que contam uma história muito mais fundamentada de nossas origens.
Lucy e outros hominídeos.
Em 1974, o paleontólogo americano Donald Johanson e seus colaboradores descobriram um extraordinário fóssil de hominídeo na região de Afar, na Etiópia. O achado foi excepcional pois apresentava um esqueleto feminino quase completo, com parte do crânio e muito mais. Na noite seguinte à descoberta, a turma se reuniu para comemorar tomando uma biritas e ouvindo música dos Beatles. Logo, alguém teve a idéia de batizar o espécime com o nome Lucy (“in the sky with diamonds”). O nome científico do fóssil depois passou a ser “Australopitecus Afarensis”, que quer dizer mais ou menos, “pequeno macaco sulista de Afar”.
A idade de Lucy (o fóssil, é claro) foi determinada como 3,5 milhões de anos, aproximadamente. Para obter esse número foi feita a datação da camada basáltica onde o fóssil foi encontrado usando-se o método Potássio-Argônio. Para mais detalhes sobre essa técnica, veja a Apostila de Dona Fifi sobre a datação isotópica. Nos anos seguintes, Johanson e seus colegas acharam uma quantidade enorme de outros fósseis em Afar, tão antigos quanto Lucy e com as mesmas características. Com essa profusão de dados foi possível armar uma imagem bem precisa do A. Afarensis e chegar a conclusões que sumarizamos a seguir.
1) Lucy viveu naquela região há mais de 3 milhões de anos.
2) Ela e seus parentes andavam sobre dois pés – isto é, eram bípedes.
3) Sua altura aproximada era de 1,3 metros.
4) Seu crânio tinha um volume de 450 cm3. Para comparação, chimpanzés modernos têm crânios de 350 cm3 e nós temos crânios de 1500 cm3.
5) É possível, mas não é inteiramente seguro, que a espécie de Lucy esteja na linha ancestral que deu origem à nossa espécie, o “homo sapiens.”
Qual era a aparência de Lucy? Ninguém sabe ao certo porque não existem fósseis de pele e pelos, normalmente. Uma representação artística de Lucy e um namorado, pintada no chutômetro mas com boa chance de corresponder ao real, resulta em algo como vemos ao lado.
Durante algum tempo, o A. Afarensis foi o fóssil de hominídeo mais antigo já descoberto. Hoje, porém, já conhecemos fósseis mais antigos que Lucy e outros mais recentes que permitiram montar um quadro da nossa evolução bem mais detalhado e complexo. A seguir, vamos dar algumas informações sobre essas descobertas, mas, recomendamos aos interessados que procurem ler os trabalhos que listamos nas Referências pois esse assunto é vasto e fascinante.
Em 1891, o pioneiro Eugene Dubois descobriu fósseis de um hominídeo na ilha de Java, no Pacífico Sul, que chamou de “Pithecantropus Erectus”, isto é, “homem macaquinho que andava em pé”. Hoje sabemos que essa espécie – e outras parecidas – viveu na Ásia há uns 500.000 anos e se extinguiu há cerca de 200.000 anos. Portanto, pela hipótese “Saindo da África”, não somos descendentes desse pessoal.
Em 1924, Raymond Dart descobriu um pequeno crânio fossilizado no sul da África que ficou conhecido como o “bebê de Taung”. Essa criatura era bem mais primitiva que o homem de Java e até hoje não se sabe se ela estava em nossa linha evolutiva ou não.
A partir de 1959, o casal Louis e Mary Leakey achou uma grande quantidade de fósseis de hominídeos na região de Olduvai, na Tanzânia. Além desses fósseis, acharam ferramentas de pedra e fósseis mais recentes que já pertenciam à espécie humana. Esse casal passou a vida na África e deu uma enorme contribuição ao nascente campo da paleoantropologia, estabelecendo definitivamente a África como berço da humanidade. Richard Leakey, filho do casal, e sua mulher Meave, continuam até hoje o trabalho pioneiro dos Leakeys, tanto no Kênia quanto na Tanzânia, com extraordinárias contribuições nesse ramo de pesquisa. E até a filha Louise, neta do casal pioneiro, continua a tradição da família de pesquisar as origens da humanidade.
O fóssil de hominídeo mais antigo achado até hoje foi descoberto em 2001, no deserto do Chade, na África Ocidental, por uma equipe liderada pelo francês Michel Brunet (será que é parente da Luiza?). Esse fóssil, visto na figura ao lado, é de um crânio datado de cerca de 7 milhões de anos e batizado de Toumai, que significa “esperança de vida” na língua do povo local. Brunet discorda de muitos colegas pois acha que não houve uma linha evolutiva única que chegou até nossa espécie, os humanos. Para ele, várias espécies pre-humanas, em tempos distintos, mas todas na África, se misturaram até dar origem à nossa espécie. Ele esteve recentemente no Brasil e anunciou que tem novos e importantes resultados, ainda não publicados, que são tão excitantes quanto o Toumai. Vamos ficar atentos.
Bem recentemente, em um número especial da revista Science de Outubro de 2009, Tim White e seus colaboradores relataram a descoberta e a análise de um espécime de hominídeo que viveu há mais de 4 milhões de anos na Etiópia. É o “Ardiphitecus Ramidus”, provável ascendente do homo sapiens e mais primitivo que Lucy. Essa “Ardi”, como o pessoal chamou, já andava sobre os dois pés mas ainda mantinha o costume de usar os punhos para se mover, de vez em quando, além de gostar de pular nos galhos de árvores. Portanto, uma legítima intermediária entre os símios e os humanos. Ao lado, uma representação artística de Ardi, como apresentada por seus descobridores. Reparem no comprimento dos braços e comparem com a figura de Lucy na figura já mostrada.
Como vemos, a busca de melhores informações sobre nossos antepassados continua intensa, o que é muito bom. Essa descoberta foi notícia de jornais e televisões do mundo todo, até do Jornal Nacional da Globo. Isso indica que o povão está curioso de conhecer sua árvore genealógica.
Nosso primo o Neandertal.
Em 1856, três anos antes de Darwin publicar “A Origem das Espécies”, o pessoal de uma pedreira que trabalhava perto de Dusseldorf, na Alemanha, região de Neander, encontrou um estranho esqueleto, parecido com esse mostrado ao lado. Levaram alguns pedaços a um professor de escola do local chamado Johann Fuhrott que teve o bom senso de procurar a opinião de um especialista. Esse entendido atestou serem restos de alguém que vivera há milhares de anos. Logo depois, o geólogo inglês William King anunciou que o fóssil devia pertencer a uma espécie antiga e extinta que chamou de “homem de Neandertal”, em alusão ao local do achado. A reação inicial da comunidade científica, como costuma acontecer nesses casos, foi desfavorável. Os sábios da época preferiam acreditar que se tratava de algum humano que vivera há milhares de anos. O formato esquisito do esqueleto, segundo eles, seria devido a alguma deformidade de nascença ou adquirida durante a vida. Só que, nos anos seguintes, foram achados muitos outros fósseis semelhantes na Europa e no Oriente e ficou evidente que esses fósseis pertenciam a uma espécie de hominídeo distinto da espécie humana. A ela deram o nome de “homo sapiens neandertalensis” para distinguir do “homo sapiens sapiens”, que somos nós.
Hoje, os Neandertais são os hominídeos mais bem estudados e descritos, se não contarmos com a nossa própria espécie. Eles já estavam na Europa e na Ásia há mais de 200.000 anos, em plena Era do Gelo e se extinguiram por completo há cerca de 25.000 anos. Os neandertais eram gente de físico atarracado, bem adaptado aos rigores do severo clima de então. A figura ao lado mostra uma representação artística de um possível neandertal em ação. Sendo pesados, precisavam consumir muito alimento, principalmente proteína, e faziam isso caçando grandes animais, como mamutes e rinocerontes peludos que existiam em abundância naquela época. Já teciam suas roupas, principalmente usando a pele dos animais que caçavam. É possível, mas não se sabe ao certo, que usassem algum tipo de linguagem e praticassem certos rituais. Há também evidências de que seguiam regras sociais de grupo, inclusive cuidando de feridos e velhos, quando necessário. O que não se sabe mesmo é porque eles se extinguiram. E essa extinção se deu depois que os humanos saíram da África e chegaram à Europa e à Ásia, há cerca de 30.000 anos. Talvez a concorrência com essa nova espécie tenha sido fatal ao neandertais.
A primeira explicação que se deu para a extinção dos neandertais afirmava que eles tinham sido aniquilados pelo “homo sapiens sapiens”, quando essa nova espécie chegou onde eles já estavam. De fato, nossa espécie tem longa tradição de aniquilar outras espécies, mas, não é certo que tenha havido confronto direto de humanos e neandertais. E, se tivesse havido, talvez os humanos tivessem sido a espécie extinta. Outro palpite é que os neandertais desapareceram por falta de alimento, cada vez mais escasso depois que os humanos chegaram e começaram a competir usando armas e ferramentas mais sofisticadas. Gradualmente, a caça pesada necessária para a manutenção dos robustos neandertais começou a ficar mais rara e eles foram, pouco a pouco, se extinguindo. Mas, há quem ache que os neandertais não se extinguiram, apenas se mesclaram com os humanos. Em vez de guerra e concorrência, amor. Nessa visão, nós seríamos o resultado de uma miscigenação com os neandertais. Entretanto, a genética vem demonstrando que essa hipótese é improvável, como vamos relatar a seguir.
Por sorte, o genoma dos neandertais não foi totalmente perdido com o tempo. Amostras de DNA dos neandertais, tanto DNA nuclear quanto mitocondrial, foram recuperadas e estão sendo intensamente analisadas. Um grupo de pesquisadores, liderado por Svante Pääbo, conseguiu extrair DNA de um pedaço de osso do primeiro fóssil de neandertal, o mesmo que foi achado pelos trabalhadores da pedreira no vale de Neander, em 1856. Como a amostra estava bastante danificada, eles usaram a famosa técnica PCR (“polymerase chain reaction”) para ampliar a quantidade de DNA extraída do fóssil. Dessa forma, conseguiram obter sequências de mais de 340 bases do DNA neandertalês, que usaram para estudo e comparação com humanos e chimpanzés. Resultados preliminares mostraram que o neandertal NÃO é nosso ancestral, com certeza. E, talvez, nem se miscigenou com nossa espécie, embora isto ainda não esteja claro. Enquanto o DNA de dois humanos difere, no máximo, de 10 bases, o DNA do neandertal difere de 35 bases em relação aos humanos. E o DNA dos humanos, como também o dos neandertais, difere de mais de 90 bases do DNA dos chimpanzés.
Essas pesquisas estão sendo continuadas e todo mês surgem novidades. Se você está curioso em saber mais sobre nossos primos, os neandertais, consulte periodicamente a internet para acompanhar essas excitantes descobertas. Por exemplo, alguns resultados parciais da análise genética já sugerem que os neandertais provavelmente tinham pele clara e sabiam se comunicar verbalmente entre si. Por fim, surge uma questão inquietante. Se os cientistas conseguirem recuperar bastante DNA nuclear dos fósseis de neandertal, será possível produzir um ser vivo dessa espécie há longo tempo extinta? E isso será eticamente correto? E como ele seria tratado – igual a nós ou cobaia de laboratório? Em breve, essas questões poderão estar nas manchetes de jornais.
Os ossos do ofício.
Cientistas de todas as áreas costumam se envolver em ruidosas disputas sobre a prioridade de descobertas, interpretação de resultados, possíveis plágios e comportamentos considerados pouco éticos. Isso talvez seja até natural, principalmente em áreas de pesquisa que envolvem muito prestígio e dinheiro, como nas grandes empresas de medicamentos. Curiosamente, a turma dos paleontólogos é uma das mais briguentas. Congressos de paleontologia costumam ser palco de muita gritaria, choro e ranger de dentes. Os neandertais, assistindo um deles, ficariam escandalizados.
Donald Johanson, em seu livro sobre a descoberta de Lucy, conta detalhes da intensa rivalidade entre Thimothy White e os Leakey. White é um americano de muito prestígio em sua especialidade mas tem um extenso histórico de atritos com colegas de profissão. Mary Leakey, que colaborou com ele durante algum tempo, acabou rompendo com o americano e dizendo alguns desaforos a ele.
Michel Brunet, de quem já falamos, descobridor do fóssil Toumai, também é conhecido por seus atritos de relacionamento com colaboradores e rivais. No Brasil, onde esteve recentemente em um congresso, Brunet disse: “O pátio de meu recreio é o deserto, onde encontro os hominídeos. Outras equipes também brincam de encontrar o mais antigo. Quando éramos crianças, era assim. Mas, agora, isso tem outro nome: inveja”.
Talvez essa agressividade dos cientistas que estudam nossas origens tenha algo a ver com as árduas condições de trabalho que precisam enfrentar. Eles costumam sofrer de doenças adquiridas nos locais onde exercem seus trabalhos, coisas como malária, disenteria, insolação e verminoses. Enfrentam animais perigosos, cobras, escorpiões, além de tempestades de areia e inundações. Sem falar em guerrilheiros de todo tipo, minas enterradas, burocratas e militares corruptos. E também o estresse de pedir e esperar por licenças de exploração e recursos financeiros.
A situação costuma ficar ainda mais complicada, politicamente, por envolver pesquisadores de vários países, trabalhando em regiões governadas por tiranos autoritários e violentos. Em 1978, o geólogo americano Jon Kalb, descobridor de fósseis importantes, foi preso e depois expulso da Etiópia sob a acusação de ser espião da CIA. Talvez fosse mesmo, mas, isso nunca ficou provado.
Johanson foi acusado de roubar amostras de museus e White é muito criticado por esconder fósseis até de colaboradores.
Não dá para contar, nesse nosso curto espaço, toda a saga das disputas entre os paleontólogos. Vale a pena ler alguns dos livros listados nas Referências abaixo ou acompanhar as faíscas pela internet.
Por fim, resta mencionar dois aspectos positivos dessa história. O primeiro é constatar que o trabalho intensivo desses pesquisadores acabou tornando ridícula a insistência de alguns (principalmente, americanos) em acreditar nas teses “criacionistas”. A Teoria da Evolução, em particular a evolução de nossa própria espécie, está mais que comprovada. Dúvidas que podem ainda restar – em ciência sempre existem dúvidas – são de detalhes de como essa evolução se deu. O Jardim do Éden, se existiu, estava em algum local da África e Eva tinha o aspecto peludinho de Lucy. E naquelas bandas, provavelmente, nem existiam macieiras.
A outra coisa boa a ser relatada é a crescente e respeitável participação de pesquisadores africanos nessa linha de trabalho. Cientistas desses países, de qualidade indiscutível, surgiram e estão em operação no Kênia, na Tanzânia, na Etiópia, no Chade e em outros países, publicando seus artigos nas melhores revistas e fazendo descobertas momentosas.
REFERÊNCIAS:
Early Man – F. Clark Howell (ed.)
Lucy, the beginnings of humankind – Donald Johanson e Maitland A. Edey.
Adventures with the missing link – Raymond Dart e Dennis Craig.
A Origem das Espécies – Charles Darwin.
A Descendência do Homem – Charles Darwin.
The First Human – Ann Gibbons.