Supercondutividade
O que é a supercondutividade. Supercondutores a altas temperaturas.
Um metal a temperatura ambiente tem resistência elétrica pequena mas não nula. Quando a temperatura baixa a resistência do metal também diminui. Que acontece se a temperatura baixar tanto que se aproxime do zero absoluto? Essa questão foi muito debatida no início do século vinte.
O holandês Heine Kammerlingh-Onnes achava que a resistência deveria diminuir cada vez mais, chegando a zero no zero absoluto. Ele argumentava que as vibrações dos átomos do metal, que dificultam o deslocamento dos elétrons e causam a resistência, deveriam cessar no zero absoluto. Nesse caso, a resistência elétrica cairia a zero gradualmente.
Já Lord Kelvin previa que os próprios elétrons deveriam se “congelar” no zero absoluto. Assim, a resistência elétrica na temperatura zero seria infinita. Para resolver esse debate só medindo a resistência dos metais em baixíssimas temperaturas.
Ninguém melhor para isso que o próprio Onnes que dispunha do melhor laboratório de baixas temperaturas do mundo na época. Ele conseguira liquefazer o gás hélio em 1908, atingindo temperaturas abaixo de 4 graus absolutos.
NOTA: hoje dizemos 4 Kelvins ( e não 4 graus Kelvin). A escala absoluta de temperaturas homenageia o velho Lord. Só que, no caso do debate sobre a resistência a zero Kelvins, o inglês errou feio.
Kammergingh-Onnes, trabalhando em seu laboratório em Leiden, começou então a medir a resistividade de metais em baixíssimas temperaturas. De início, o metal escolhido por ele foi o mercúrio que tinha a vantagem de poder ser altamente purificado. O resultado da experiência foi surpreendente. Ao atingir 4,2 Kelvins a resistência elétrica do fio de mercúrio caiu subitamente a zero! Não foi caindo gradualmente, como pensava Onnes, nem foi para infinito, como queria Kelvin. Como o próprio Onnes disse: “o mercúrio a 4,2 K entra em um novo estado, o qual, devido a suas propriedades elétricas, pode ser chamado de estado de supercondutividade”.
Esse resultado foi apresentado por Onnes em um artigo publicado em uma revista científica holandesa em Maio de 1911, com o título “Sobre a variação da resistência elétrica de metais puros em temperaturas muito baixas. O desaparecimento da resistência do mercúrio”.
Nos anos seguintes, esse fenômeno – a supercondutividade – foi verificado em vários metais e ligas mas, sempre, em temperaturas muito baixas. Essa limitação frustrante só foi vencida muitos anos depois, em 1986, como contaremos mais adiante.
Uma explicação teórica para a supercondutividade também demorou muito a ser encontrada. Só em 1957, John Bardeen, Leon Cooper e Robert Schrieffer propuseram uma teoria (a Teoria BCS) que explicava satisfatoriamente o fenômeno. Falaremos logo mais sobre essa teoria, mas, para preparar o terreno, vamos primeiro dizer mais alguma coisa sobre o comportamento dos supercondutores.
O Efeito Meissner
Um supercondutor caracteriza-se por dois efeitos:
a) O material não apresenta nenhuma resistência elétrica (R = 0).
b) O campo magnético dentro do material é zero (B = 0).
A segunda condição é o chamado Efeito Meissner, descoberto em 1933 por W. Meissner e R. Ochsenfeld. Supercondutores que apresentam um completo efeito Meissner são ditos do tipo I. Esses supercondutores são, não apenas condutores perfeitos, mas também, diamagnéticos perfeitos. Essa propriedade é muito importante e serve para caracterizar o supercondutor, além de dar uma pista para as tentativas teóricas de explicar o fenômeno.
A demonstração clássica do efeito Meissner consiste em fazer um ímã permanente flutuar sobre a superfície de um supercondutor. As linhas do campo magnético são impedidas de penetrarem no supercondutor e tomam uma forma semelhante a que teriam se houvesse outro ímã idêntico dentro do material supercondutor (ímã “imagem”). Dessa forma, o ímã sofre uma repulsão que compensa seu peso e “levita” sobre o supercondutor.
Hoje se sabe que existem dois tipos de supercondutor. Nos supercondutores do tipo I, o efeito Meissner é total, enquanto nos supercondutores do tipo II há uma pequena penetração das linhas de campo magnético para dentro do material. Esses últimos costumam suportar correntes mais fortes que os primeiros, sem perder a condição de supercondutor. Logo, são mais promissores para possíveis aplicações. Além disso, os supercondutores de altas temperaturas, dos quais falaremos adiante, parecem ser do Tipo II.
Os pares de Cooper
O fenômeno da supercondutividade começou realmente a ser entendido em 1956, quando Leon Cooper teve a idéia de que os elétrons que transportam a “supercorrente” se associam em pares enquanto se deslocam pelo material. Um elétron normal que se desloca pela rede cristalina de um condutor vai se chocando com os átomos da rede, perdendo energia e aquecendo o material. Isso é chamado de “efeito Joule” e ocorre em todo condutor normal.
Cooper mostrou que dois elétrons podem se associar formando o que hoje se chama um “par de Cooper”. Logo se desconfiou que esses pares de Cooper poderiam ser os responsáveis pela corrente supercondutora em materiais a baixas temperaturas. Normalmente, dois elétrons, ambos com carga negativa, não podem chegar perto um do outro por causa da forte repulsão coulombiana. No entanto, Cooper sugeriu que, dentro de um sólido metálico, dois elétrons poderiam vencer essa repulsão mútua com a ajuda de uma excitação da rede cristalina do material, comumente chamada de “fônon”. Portanto, para entender como são os pares de Cooper, vejamos primeiro como é um fônon.
Um fônon é uma excitação mecânica que se propaga pela rede cristalina de um sólido. Normalmente, essa excitação, que se desloca como uma onda pelo material, é causada pela agitação natural existente em todo sistema sujeito a uma temperatura finita. Ela consiste de pequenos deslocamentos dos átomos da rede como mostrado, de forma muito simplista, na animação ao lado. É claro que, quanto maior a temperatura maior o número de fônons, e esses fônons se propagam em todas as direções dentro do material.
Os átomos da rede cristalina de um metal não são eletricamente neutros. Normalmente, eles perderam elétrons e se tornaram positivamente carregados. São os elétrons perdidos que transportam corrente elétrica pelo sólido. Um elétron que se desloca através do material vai perturbando os átomos da rede, atraindo-os por força coulombiana. Essa perturbação é um fônon que sai, de algum modo, na rasteira do elétron, como uma turbulência que segue um carro.
O fônon gerado pela passagem de um elétron, sendo uma onda de átomos positivos deslocados, pode capturar outro elétron que esteja por perto. Isso forma o par de Cooper: dois elétrons ligados através de um fônon da rede. O fônon formado de cargas positivas deslocadas permite que os elétrons, que normalmente se repelem, viajem em conjunto pelo sólido. Em temperatura alta, a agitação térmica é tão forte que um par de Cooper não consegue se manter vivo e logo se quebra. Em baixas temperaturas, no entanto, as chances melhoram.
Resta saber porque um par de Cooper consegue se deslocar sem impedimento através de um material que está no estado supercondutor. Esse será o assunto da próxima seção.
A teoria BCS da supercondutividade
Só após 46 anos da descoberta de Onnes é que surgiu uma explicação bem sucedida do fenômeno da supercondutividade. Em 1957, os físicos John Bardeen, Leon Cooper (o mesmo dos pares) e Robert Scrieffer apresentaram um modelo teórico que concordava muito bem com as observações experimentais nos supercondutores. Esse modelo ficou conhecido por Teoria BCS, das iniciais dos autores, e lhes rendeu o Prêmio Nobel de Física de 1972. Bardeen já recebera outro Nobel pela invenção do transistor e, até hoje, foi o único a receber dois prêmios de Física.
A idéia central dessa teoria é a formação de pares de elétrons, os pares de Cooper. Como vimos, a associação de elétrons, apesar da repulsão elétrica entre eles, é possibilitada por vibrações da rede, os “fônons”. Mas, resta explicar porque os pares de Cooper conseguem se deslocar sem impedimento pela rede cristalina, enquanto os elétrons individuais sofrem resistência.
A teoria BCS, analisando detalhadamente o acoplamento entre elétrons e fônons, mostra que os elétrons dos pares de Cooper têm energia ligeiramente inferior à energia dos elétrons individuais não pareados. Em termos técnicos, diz-se que existe um “gap” de energia separando os elétrons emparelhados dos elétrons normais,
Quando um elétron, em um condutor normal, interage com os átomos da rede, dá-se uma troca de energia, como costuma acontecer em toda interação. Na interação, o elétron pode transferir energia para os átomos, como uma bola de sinuca se chocando com outra, e, no processo, os átomos são “excitados”. Isto é, a energia da interação gera uma vibração nos átomos da rede. Foi o que vimos em uma das animações da seção anterior. Isso provoca o aquecimento do material, resultando em uma resistência ao deslocamento dos elétrons livres. No entanto, se dois elétrons já estiverem ligados em um par de Cooper, essa interação com outros átomos da rede só será possível se a energia trocada for maior que a energia do “gap”. Quando a temperatura é alta, há muita disponibilidade de energia térmica para isso, e os pares de Cooper nem conseguem se formar, ou, quando se formam, são logo aniquilados. No entanto, baixando-se a temperatura, pode-se chegar a um valor no qual a energia disponível para trocas térmicas é menor que a energia do “gap”. Quando isso acontece, alguns pares de Cooper não são aniquilados pela agitação térmica. Mesmo que os elétrons de um par se choquem com átomos da rede, não haverá troca de energia entre eles. Em processos quânticos, como são esses choques, só pode haver troca de energia se o “gap” for vencido. Não pode haver troca parcial de energia. O choque, se houver, será “elástico”, sem perda de energia pelos elétrons.
A temperatura na qual o material fica supercondutor, chamada de temperatura crítica, TC, é uma medida do tamanho do “gap” de energia. Em um supercondutor típico, do tipo conhecido até a década de 80, a energia do “gap” era bem pequena, da ordem de 0,01 eletrons-volt. Por isso, as temperaturas críticas desses supercondutores são tão baixas.
O grande sucesso da teoria BCS deveu-se ao excelente ajuste entre suas previsões e as observações experimentais.
1) A existência dos pares de Cooper depende de uma interação entre os elétrons e os átomos da rede, como vimos. Para testar essa hipótese, foram feitas medidas da temperatura crítica em materiais onde alguns átomos eram trocados por seus isótopos mais leves ou pesados. Se, realmente, os fônons estiverem envolvidos na formação dos pares, essa troca deve afetar a temperatura crítica de transição ao estado supercondutor.
O gráfico ao lado mostra o resultado obtido com o mercúrio, cuja supercondutividade foi descoberta por Onnes. O mercúrio tem vários isótopos, com pesos entre 203 e 198. Como vemos, a temperatura crítica cai para isótopos mais pesados, confirmando a teoria que prevê uma dependência com o inverso da raiz da massa atômica.
2) A teoria BCS prevê que o “gap” de energia controla o valor da temperatura crítica. Quanto maior o “gap”, maior a temperatura de transição. A previsão da teoria, obtida de uma análise rigorosa da interação elétron-fônon, é que essa relação deve ser:
EGAP = (7/2) k TC
onde k é a chamada constante Boltzmann.
A experiência concorda de forma excelente com essa previsão, como mostra o gráfico ao lado. A linha reta é a previsão teórica (equação acima) e os pontos mostram a energia do “gap” medida para vários supercondutores.
Segundo a teoria BCS, o calor específico de um supercondutor deve crescer exponencialmente, ao se aproximar da temperatura crítica. Isto é:
C = A e-b/kT
onde A e b são constantes que dependem do material supercondutor.
A figura ao lado mostra o resultado experimental para o Vanádio, cuja temperatura crítica é 5,4 K. Os pontos são as medidas experimentais e a linha contínua é a previsão da teoria. A inclinação dessa reta, por sinal, permite calcular a energia do “gap”, que, para o Vanádio, é de 1,3 meV, concordando bem com as experiências.
Portanto, a teoria BCS teve enorme sucesso, explicando muito bem o comportamento dos materiais supercondutores conhecidos até a década de 80 do século passado. Mas, em 1986, um novo tipo de supercondutor surgiu na praça e a história se modificou. É o que veremos a seguir.
Supercondutores a altas temperaturas
Nos anos seguintes à descoberta da supercondutividade por Onnes, muitos materiais supercondutores foram encontrados, quase todos metálicos. No entanto, todos tinham temperaturas críticas baixíssimas. Até o início da década de 80, o recorde era o Nb3Ge, com TC perto de 23 K (-250o C)! Para piorar o quadro, a teoria BCS indicava que dificilmente supercondutores com temperaturas críticas acima de 25 K seriam encontrados, pelas razões que descrevemos na seção anterior (energia do “gap”). Mas, em 1986, dois físicos que trabalhavam no laboratório da IBM em Zurich, Alemanha, mudaram tudo ao descobrir que um material cerâmico, um óxido de cobre com bário e lantânio, ficava supercondutor a 30K.
Em Abril de 1986, Georg Bednorz e Alex Mueller submeteram um artigo ao Zeitschrift für Physik intitulado “Possível supercondutividade de alto Tc no sistema Ba-La-Cu-O”. Nesse artigo de título modesto eles descrevem como sintetizaram uma cerâmica com fórmula Bax La5-xCu5O5(3-y). Esse material é uma cerâmica do tipo perovskita, com uma estrutura de camadas. As perovskitas, na forma de silicatos, são os materiais mais abundantes da crosta terrestre, a velha areia. Os sub-índices da fórmula mostram que eles partiram de um composto normal, um óxido de cobre com bário e lantanho, e foram retirando oxigênio em várias proporções. Quando x=0,75, o material apresentava uma fase cuja resistividade caía a zero perto de 30K. Como, até aquele momento, eles ainda não tinham verificado o efeito Meissner nesse material, acharam melhor dar um título prudente ao artigo.
Mas, já em Outubro eles observaram o efeito Meissner confirmando que a cerâmica era mesmo um supercondutor. A notícia se espalhou rapidamente e, antes do fim do ano, vários outros compostos dessa mesma família foram descobertos por laboratórios de todo o mundo, com temperaturas críticas cada vez mais elevadas. Até que, em Janeiro de 1987, Paul Chu, da Universidade de Houston, mostrou que o YBa2Cu3O7 era supercondutor com uma incrível temperatura crítica acima de 90 K.
Hoje já são conhecidos supercondutores com temperatura crítica acima de 130 K. A grande vantagem de um supercondutor ter temperatura de transição acima de 77 K vem do fato de ser esta a temperatura de liquefação do nitrogênio. O nitrogênio é o elemento mais abundante de nossa atmosfera (~80%) e é relativamente barato e fácil de liquefazer.
Portanto, quando se fala de supercondutores de alto TC, estamos falando em temperaturas críticas ainda muito baixas, da ordem de -150°C. A maioria dos supercondutores de alto TC (SCAT, para abreviar) consiste de cerâmicas com estrutura de perovskita modificada. O curioso é que esses materiais são maus condutores de eletricidade na temperatura ambiente. São formados de camadas e, como já se sabe, os portadores de carga se deslocam nos planos que contêm os átomos de cobre e oxigênio, vistos na figura ao lado assinalados por setas. Portanto, o transporte de carga é praticamente bi-dimensional, muito anisotrópico, como dizem os físicos.
Outra grande beleza desses materiais é que eles são relativamente fáceis de serem sintetizados. Hoje, isso já é até projeto de Feira de Ciência de estudantes de segundo grau. Uma receita (em inglês) pode ser encontrada na Internet em http://imr.chem.binghamton.edu.
A importância dos supercondutores em geral e dos SCAT em particular, ficou evidenciada pela rapidez com que resultou em prêmio Nobel para seus descobridores. Onnes descobriu a supercondutividade em 1911 e já recebeu seu Nobel em 1913. Bednorz e Mueller descobriram o primeiro SCAT em 1986 e receberam o Nobel no ano seguinte, em 1987. Foi o Nobel mais rápido da história do prêmio.