Quarenta Séculos de π
O número π = 3,14159…, a razão entre o perímetro e o diâmetro de qualquer circunferência, é um número famoso que vem fascinando a mente humana desde a mais remota antiguidade.
Nos capítulos seguintes, o Prof. José Maurício O. Matos, doutor em física molecular pela Universidade de Lund, Suécia, nos conta algumas curiosidades sobre esse surpreendente número, algumas pouco conhecidas e que podem até ser objeto de investigação por qualquer estudante que saiba manejar adequadamente um microcomputador. Boa leitura.
Pequena história de π.
Há milhões de anos, emergindo através de processos evolutivos, surge o homem inteligente. Durante sua evolução aprende a reconhecer formas e dimensões e desenvolve os conceitos de magnitude e número para efetuar medidas e compreender a existência de relações entre diferentes grandezas. Não conhecemos os detalhes desses avanços. Porém, sabemos através de evidências documentais, que por volta de 2000 a.C., o homem já reconhecia o significado da constante que hoje denotamos por π e havia feito uma estimativa do seu valor.
Como se chegou a esse ponto? Para responder a essa questão talvez tenhamos de retornar aquém da Idade da Pedra ou talvez ingressar no campo da especulação.
Antes da invenção da roda o homem certamente deve ter aprendido a identificar a forma circular. Seja na pupila de seus semelhantes e dos animais, seja observando, encantado, a lua cheia e perigosamente o sol. Talvez fosse instigado pela infinita simetria do círculo quando, com um graveto, tentava desenhá-lo na areia. Sabe-se que habitações humanas datando de 8000 a.C. apresentavam formas circulares.
Em 2000 a.C., os babilônicos e egípcios sabiam que a circunferência (C) de um círculo dividida pelo seu diâmetro (D) resultava em uma constante para qualquer círculo. Modernamente escrevemos, C / D = p. O primeiro valor estabelecido de π foi publicado por um escriba egípcio chamado Ahmes em torno de 1650 a.C. No documento, hoje conhecido como o Papiro de Rhind, Ahmes escreveu: “Corte 1/9 do diâmetro de um círculo e construa um quadrado com o restante; esse quadrado tem a mesma área do círculo”. Veja a figura.
Seguindo a prescrição de Ahmes e sabendo que a área do círculo é igual a p(d / 2)2, e que a área do quadrado construído é (8 d / 9)2, onde d é o diâmetro do circulo, escrevemos então:
π = 256 / 81 = 3,16049.
O erro relativo do valor obtido por Ahmes é menor que 1% do valor de π com cinco casas decimais, 3,14159. Na verdade, um resultado surpreendente para a época. As fórmulas e o raciocínio expostos no Papiro de Rhind são também a primeira descrição da construção de um quadrado com a mesma área de um círculo dado. A quadratura do círculo torna-se então um dos problemas mais antigos da matemática e coloca π como o símbolo matemático que mais ocupou e inspirou a mente de homens e mulheres que, ainda, persistentemente, calculam, memorizam e estudam a natureza desse número através da história.
Muitos matemáticos famosos debruçaram-se sobre π e sobre os problemas relacionados a ele. Por exemplo, Leonhardt Euler (1707-1783) levantou questões importantes como: “Que tipo de número é o p”? É racional ou irracional? É algébrico ou transcendental? J. H. Lambert (1728-1777), em 1776, estabelece a irracionalidade de p. Em 1840, Joseph Liouville (1809-1882) prova a existência de números transcendentais. Adrien-Marie Legendre (1752-1833) no seu livro Elements de Géometrie (1794) demonstra a irracionalidade de π numa forma mais rigorosa e prova também que p2 é irracional. No fim do seu livro, Legendre sugere que π é não algébrico. Em 1882, C. L. Ferdinand Lindemann (1852-1939), estendendo o teorema de Hermite e usando a fórmula de Euler, eiπ + 1 = 0, prova a transcendência de p. A história de p, suas curiosidades e a odisséia dos cálculos dos dígitos de π são muito bem descritos nos livros de P. Beckmann, D. Blatner, L. Berggren, J. Borwein, P. Borwein, J. Arndt, C. Haenel e C. B. Boyer, listados nas Referências, no fim desse relato.
A importância de π deve-se também ao fato da sua presença em várias equações de diferentes campos da ciência: descrevendo a hélice dupla do DNA, na teoria das supercordas, nas equações de Einstein do campo gravitacional, na arquitetura e em um grande número de problemas geométricos e estatísticos. O π apresenta-se também na teoria das vibrações e movimentos ondulatórios. Mesmo na arte π tem sido uma fonte de inspiração. O astrônomo Carl Sagan na sua novela Contacto, inclui os dígitos de π como parte de uma mensagem enviada à Terra por seres extraterrestres que tentam comunicar-se com os terráqueos. Umberto Eco, na primeira página do seu livro O Pêndulo de Foucault, descreve o pêndulo e a associação de π com o período do pêndulo. No filme “p, faith in chaos”, escrito e dirigido por Darren Aronofsky, um atormentado matemático tenta decifrar um código, baseando-se em dígitos de p, para compreender o padrão do mercado de capitais.
O número π no cálculo das probabilidades.
Embora originalmente π tenha sido definido na geometria, é interessante notar como ele aparece inesperada e freqüentemente no cálculo das probabilidades. Um exemplo famoso é o problema conhecido como a agulha de Buffon. O matemático francês George Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788), propôs e resolveu esse problema em 1777. Leclerc perguntava: “Suponha que você tenha uma folha de papel pautada sobre uma mesa, onde as linhas das pautas são espaçadas por uma distância fixa. Uma agulha, de comprimento, rigorosamente igual ao espaçamento entre as linhas, é jogada, inteiramente ao acaso, sobre a folha de papel. Qual é a probabilidade de que a agulha caia sobre a folha de modo que intercepte uma das linhas?” Veja a figura. Surpreendentemente, a resposta é 2 / π . Portanto, em princípio, poderíamos calcular o valor de π repetindo o experimento muitas vezes e calculando o número de intersecções dividido pelo número total de jogadas.
Uma variante do problema da agulha de Buffon e que é facilmente programável num computador é o do lançamento de dardos, que discutiremos a seguir. Imagine um círculo de raio unitário com um quadrado circunscrito de lado igual a duas vezes o raio. Lançam-se dardos sobre o quadrado, seguindo uma distribuição aleatória. Sempre que o dardo atinge a região definida pelo círculo temos um acerto. Podemos simplificar o procedimento considerando apenas o primeiro quadrante. Quando o número de arremessos (n) cresce, o número de acertos (t) aproxima-se da área do quadrante circular e o número de arremessos tende para a área do quadrado, podemos então escrever:
. Ou seja:
O resultado é um algoritmo simples para obter-se aproximações de p. Você precisa somente simular o número de arremessos (o maior possível) e testar em cada arremesso se o dardo atinge o setor circular. O teste é muito simples: se x e y são as coordenadas do ponto onde o dardo atinge o quadrado ( ) então, teremos um acerto (pontos azuis) quando , isto é, . Na figura abaixo, mostramos uma simulação (n = 1000) onde obtemos o valor de π =3,140100. Na figura, mostramos também como o valor medido de π varia numa série de simulações com n indo de 500 até 100.000 arremessos.
A corrida das decimais de π.
O cálculo dos dígitos decimais de π tem sido realizado por mais de 4000 anos com propósitos práticos e por razões teóricas e estende-se ao longo do desenvolvimento da cultura humana. Nas tabelas abaixo, apresentamos um resumo da evolução no tempo do cálculo dos dígitos de p. Arquimedes foi o primeiro homem que seriamente tentou obter um valor de π por raciocínio e técnica matemática, aproximando a circunferência de um círculo unitário pelo limite entre o comprimento de polígonos eqüilaterais inscritos e circunscritos no círculo.
Em 1671, J. Gregory descobre a série do arco tangente e, em 1706, J. Machin, usando essa série, calcula os 100 primeiros dígitos de p. Em 1949, inaugurando a era dos computadores no cálculo dos dígitos de p, Reitwiesner, von Neumann e Metropoli, usam o computador ENIAC (Electronic Numerical Integrator Computer) do Centro de Pesquisas Balísticas em Maryland, Estados Unidos, para calcular π com 2.037 casas decimais. O cálculo demorou 70 horas e o programa usado baseava-se no método de Machin. O primeiro milhão de dígitos foi calculado em 1973 por Guillard e Bouyer. A partir dos anos 80, com a sofisticação dos computadores, o número de dígitos de π calculados cresce rapidamente. Veja a tabela.
e calcula p com 100 casas decimais. |
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O primeiro bilhão de dígitos foi obtido pelos irmãos Gregory e David Chudnovsky. Os irmãos Chudnovsky, imigrantes russos radicados nos Estados Unidos, são matemáticos com especialidade em teoria dos números e física matemática. Fazem parte da história do cálculo dos dígitos de π não só pelos recordes estabelecidos como também pela originalidade tecnológica com que obtiveram os seus resultados. Depois do recorde do primeiro bilhão, construíram um supercomputador no apartamento de Gregory Chudnovsky, feito de componentes compradas pelo correio. O “m zero”, como foi chamado o computador, é na verdade um supercomputador com dezesseis processadores em paralelo e dissipando 2000 watts de potência. Com esse computador e com versões posteriores aperfeiçoadas, os Chudnovskys conseguiram em 1996 a marca recorde dos oito bilhões de dígitos.
Para ler uma entrevista com esses persistentes matemáticos e saber mais detalhes do trabalho que fazem, acesse o site da revista NOVA.
Qual a razão de se calcular π com um número tão grande de dígitos? O π calculado com dez casas decimais é suficiente para resolver a grande maioria dos problemas práticos. Por exemplo, com dez casas decimais obtem-se a circunferência da terra com uma precisão de fração de polegada. Com trinta casas decimais obteríamos a circunferência do universo visível com a precisão do raio de Bohr do átomo de hidrogênio. Um uso prático do desenvolvimento de programas para cálculos dos dígitos de π é a possibilidade de testar processadores e sistemas computacionais. O cálculo de bilhões de dígitos de π requer a execução de trilhões de operações aritméticas e lógicas, de modo que, se há algum erro no hardware de um computador ou na lógica, um teste com essa magnitude, muito provavelmente será capaz de detectá-lo. De fato existem exemplos de que erros de lógica sutis foram identificados em computadores ao calcular os dígitos de π.
O número π e os fractais.
O número π tornou-se então o padrão clássico para análise numérica. Com muitas casas decimais conhecidas com toda a certeza, novas técnicas e métodos podem ser verificados usando π como medida de comparação. A grande quantidade de dígitos de π oferece a oportunidade da abordagem de vários problemas teóricos. Mais ainda, no campo da álgebra computacional, que possibilita o tratamento de questões teóricas por meio de experimentos, a quantidade de dígitos de π disponíveis é inestimável. Como uma ilustração simples a esse ponto mostraremos como se pode construir um dos fractais regulares mais conhecidos, o triângulo de Sierpinski usando-se os dígitos de π.
Na figura acima, temos um triângulo ABC, equilátero e de lado unitário. De posse dos dígitos decimais de π introduzimos o seguinte algoritmo: ao vértice A associamos os números 1, 2 e 3, ao vértice B associamos os números 4, 5 e 6, e ao vértice C associamos os números 7, 8 e 9. Geramos no plano um ponto qualquer i, (veja a figura), e procedemos a uma leitura seqüencial dos dígitos de π. Se o dígito lido é 0, nada fazemos com o ponto i, mas, se por exemplo, o dígito lido é 1, 2 ou 3, movemos o ponto i para j ao longo da linha que une o vértice A ao ponto i, de modo que a distância do ponto j ao vértice A é a metade da distância de i para A. Gravamos o ponto j e lemos o dígito seguinte de π procedendo da mesma maneira, movendo o ponto anterior de d / 2 na direção do vértice correspondente ao dígito lido. O resultado desse processo para 50000 dígitos de π lidos é mostrado na figura abaixo:
As decimais de π são aleatórias?
A partir de 1997, o grupo do Prof. Yasumasa Kanada da Universidade de Tóquio, Japão, assume a liderança no cálculo dos dígitos de p. Em setembro de 1999 eles atingem a marca de mais de duzentos bilhões de dígitos calculados e em outubro de 2002 calculam mais de um trilhão e duzentos bilhões de dígitos de p. O cálculo demorou 602 horas num computador Hitachi SR8000 com uma memória de 1 terabyte. O algoritmo usado envolve as fórmulas do arco tangente para p. Usando fórmulas diferentes, os pesquisadores puderam comparar os resultados e verificar a precisão dos mesmos. Kanada, atualmente, analisa os dados, sua distribuição estatística e apresenta resultados preliminares em seu site na internet. Na tabela abaixo, mostramos a freqüência dos dígitos de π nos primeiros 800 bilhões de dígitos.
DÍGITO | FREQÜÊNCIA |
0 | 79.999.604.459 |
1 | 79.999.983.991 |
2 | 80.000.456.638 |
3 | 79.999.778.661 |
4 | 80.000.238.690 |
5 | 79.999.773.551 |
6 | 79.999.935.320 |
7 | 79.999.775.965 |
8 | 80.000.650.170 |
9 | 79.999.802.555 |
É interessante notar que ainda não podemos afirmar nada sobre as questões de distribuição e aparente aleatoriedade dos dígitos de p. Na tabela acima, os dígitos pares parecem ser ligeiramente mais frequentes que os ímpares. Será uma tendência? Ninguém pode descartar a possibilidade de que em algum ponto, muito além do trilhão de dígitos, π comece a apresentar nos seus dígitos decimais, somente 0 e 9.
O Prof. José Maurício O. Matos, juntamente com seus colegas José Ramos Gonçalves e André Auto Moreira, do Departamento de Física da UFC, está submetendo um artigo sobre a análise de Hurst e outros métodos de dinâmica não linear aplicados aos dígitos de π.
Referências
1. P. Beckmann, “A history of π”, St. Martin’s Pree, (1971)
2. D. Blatner, “A joy of π”, Walker, (1997)
3. L. Berggren, J. Borwein, P. Borwein, “π: A Source Book”, Springer, Second Edition, (2000)
4. J. Arndt, C. Haenel, “π Unleashed”, Springer, Second Edition (2000)
5. C. B. Boyer, “A History of Mathematics”, John Wiley & Sons, Inc., (1991)
6. C. Sagan, “Contact”, Pocket Books, (1986)
7. Umberto Eco “O Pêndulo de Foucault”, Editora Record, (1989)
8. D. Aronofsky, “π: faith in chaos”, DVD, Protozoa Pictures Inc. (1998)
9. R. Preston, “The mountains of π”, The New Yorker, março, (1992)