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A Eletricidade das Tempestades

Raios e relâmpagos, como surgem e como servem para equilibrar a carga da atmosfera.

“Por momentos um cúmulus compacto, de bordas acobreado-escuras, negreja no horizonte. Deste ponto sopra, logo depois, uma viração, cuja velocidade cresce rápida, em ventanias fortes. A temperatura cai em minutos e, minutos depois, os tufões sacodem violentamente a terra. Fulguram relâmpagos; estrugem trovoadas nos céus já de todo bruscos e um aguaceiro torrencial desce logo sobre aquelas vastas planícies.”

Assim descreve Euclides da Cunha a tempestade, uma das mais espalhafatosas manifestações da natureza, objeto de estudo de filósofos e cientistas desde a antiguidade. A física das descargas elétricas atmosféricas, os raios, ainda não está completamente desvendada mas os especialistas até que já sabem alguma coisa.

Esse é o tema desta seção. Em nosso relato, vamos admitir que você já conhece um pouco de eletricidade, sabe o que é um campo elétrico, um potencial, uma corrente e um capacitor. Será uma exposição bem simplificada, por razões óbvias. A intenção é dar um esboço geral dos fenômenos e, possivelmente, despertar o interesse de futuros físicos da atmosfera. Mais detalhes podem ser encontrados em livros e locais citados no fim da última seção.

O capacitor planetário de Lord Kelvin.

Em um dia normal, com tempo (dito) bom, existe um campo elétrico na atmosfera que vale cerca de 100 volts por metro e aponta para baixo. Isso significa que há uma voltagem de quase 200 V entre sua cabeça e seus pés. Por que você não sente essa voltagem?

Nosso corpo é um condutor elétrico relativamente bom, se comparado com o ar. Por essa razão, o potencial de seu corpo fica igual ao potencial do solo. As linhas equipotenciais (isto é, de mesma voltagem) se distorcem em torno do corpo.

Esse campo elétrico, que é de 100 V/m perto da superfície da Terra, vai diminuindo com a altitude e é praticamente nulo a uns 50 quilômetros de altura. No total, entre as camadas altas da atmosfera e o solo existe uma diferença de potencial de uns 200.000 Volts.

Para explicar esse campo o célebre físico inglês Lord Kelvin concebeu uma hipótese de que a superfície da Terra e a “ionosfera”, camada que fica a 50 Km de altura, formam um capacitor esférico, com essa diferença de potencial de 200.000 Volts entre as “placas”. Acontece que o espaço entre as placas, o dielétrico, que nada mais é do que a atmosfera onde vivemos, não é totalmente isolante.

Verificou-se, experimentalmente, que existe uma fraca corrente elétrica de “fuga” entre as placas desse capacitor hipotético.

De onde vem essa condutividade elétrica da atmosfera? Vem da presença de “íons”, partículas carregadas positiva ou negativamente. O ar atmosférico, com você sabe, compõe-se, principalmente, de moléculas de nitrogênio (~80%) e de oxigênio (~20%). Verificou-se, no fim do século passado, que algumas dessas moléculas são carregadas (“íons”), isto é, perderam ou ganharam elétrons. No início do século 20, quando a recém-descoberta radioatividade estava na moda, sugeriu-se que o processo de ionização era causado pela radioatividade da Terra, que realmente existe. Partículas emitidas pela radioatividade do solo estariam se chocando com as moléculas do ar, arrancando ou injetando elétrons e, no processo, tornando-as carregadas. Só que surgiu um problema. Com esse mecanismo, a densidade de íons deveria diminuir com a altitude e, para desconcerto dos físicos da época, medidas com balões mostraram exatamente o contrário: a ionização da atmosfera cresce com a altitude! O mistério permaneceu durante alguns anos até a descoberta dos chamados “raios cósmicos”.

O que são esses raios cósmicos é uma história contada por Dona Fifi em outro local que você pode ler depois. Por enquanto, basta saber que são partículas de grande energia, vindas do espaço exterior, que bombardeiam as altas camadas da atmosfera e geram, no processo, os íons de que falamos. A radioatividade do solo também produz íons, só que em número muito menor. A concentração média de íons na atmosfera é cerca de 1000 por centímetro cúbico. São eles que tornam a atmosfera fracamente condutora de eletricidade.

Agora, junte a diferença de potencial de 200.000 Volts entre as “placas” e essa condutividade devida aos íons e obterá uma corrente elétrica na direção do solo com densidade da ordem de 2x10-12 Ampéres por metro quadrado. Multiplicando essa densidade de corrente pela área do planeta obtemos uma corrente total de uns 1000 Ampères!

Com essa corrente descarregando o capacitor planetário de Lord Kelvin, a diferença de potencial e o campo elétrico entre as placas deveriam se anular em poucas horas. Só que isso não está acontecendo, como mostram as medidas experimentais. Algo deve estar suprindo continuamente a diferença de potencial e mantendo o capacitor carregado.

Vamos já dizer o que é. Antes, porém, queremos descrever uma interessante curva, descoberta nos anos 20, e que terá um papel em nossa historinha.

A curiosa curva de Carnegie.

Essa curva foi o resultado de medidas feitas, nos anos 20 do século 20, por pesquisadores do navio americano Carnegie. Ela mede a variação média do campo elétrico em uma posição qualquer da Terra, durante um dia típico, de tempo bom. Embora tenha sido obtida com medidas feitas apenas no oceano, ela serve, acochambrando um pouco, para posições nos continentes. A abcissa indica a hora em Londres (hora de Greenwich) e a ordenada mostra o valor do campo elétrico em outro ponto qualquer do planeta. Quer dizer: em um local qualquer do globo, o campo elétrico atinge um valor máximo quando são 7 horas da noite em Londres! E é mínimo quando são 4 horas da madrugada em Londres.

Esse resultado parece muito misterioso, mas, não é tanto assim. Basta lembrar que o capacitor planetário de Kelvin é um modelo global. Variações de potencial entre as “placas” só podem ocorrer globalmente, pois a boa condutividade na ionosfera (a “placa positiva”) se encarrega de distribuir rapidamente qualquer acúmulo local de cargas. “Certo”, você pode dizer, “mas, por que logo 7 horas da noite? Por que não outra hora qualquer”? Boa pergunta. Isso ninguém sabe explicar direito. Talvez você mesmo, algum dia, possa responder essa pergunta para nós.

Por enquanto, o que importa é que essa curva serviu para ajudar a identificar o gerador que mantém a diferença de potencial entre a ionosfera e o solo. Esse gerador são as tempestades, como veremos a seguir.

O gerador global: as tempestades.

Como vimos, juntando todas as regiões de tempo bom no globo, verificou-se que há uma corrente elétrica de uns 1000 Ampères descarregando o capacitor planetário. O gerador que mantém o capacitor carregado, como veremos a seguir, são as tempestades e seus raios. As “descargas” elétricas que chamamos de raio, na verdade, carregam o capacitor terrestre, trazendo cargas negativas das nuvens para o solo.

Na figura abaixo mostramos uma “caricatura” do quadro global. A superfície da Terra é a placa negativa do capacitor e a ionosfera, a uns 50 km de altitude, é a placa positiva. Nas regiões de tempo bom, mostradas (apropriadamente) em azul, há uma corrente da placa positiva para a negativa. No total, essa corrente chega a 1000 Ampères e tende a descarregar o capacitor. Lembre que o “sentido convencional” da corrente elétrica vai da placa positiva para a negativa. As regiões onde ocorrem tempestades funcionam como se fossem enormes baterias suprindo uma corrente positiva do solo para cima. No cômputo geral, os dois efeitos se compensam e o capacitor se mantém carregado.

As evidências que dão suporte a esse modelo são as seguintes. Medidas da quantidade de carga trocada durante as tempestades elétricas levam a valores de corrente total que se aproximam daqueles 1000 Ampères que fluem, em sentido contrário, nas regiões de tempo bom. Isso dá um balanço quantitativo ao processo geral. Além disso, verificou-se que as tempestades ocorrem, em média, com maior frequência quando são 19 horas em Greenwich. Isto é, a distribuição das áreas de tempestade reproduz, aproximadamente, a curva de Carnegie, mostrando que há uma correlação entre as duas correntes.

Isso quer dizer que as tempestades com raios no Piauí, por exemplo, devem ocorrer com maior freqüência por volta das 4 horas da tarde, quando são 7 horas da noite em Londres. Talvez seja por isso que, de vez em quando, morre alguém jogando pelada de várzea no Piauí, atingido por um raio.

Resta, agora, descrever os personagens principais de nossa novela: as nuvens de tempestade e os raios. Esse ainda é um assunto ativo de pesquisa, como veremos nos próximos capítulos.

A eletricidade das nuvens de tempestade.

As tempestades envolvem grandes nuvens chamadas “cumulus nimbus”. São nuvens pesadas, com uns 10, ou mais, quilômetros de diâmetro na base e uns 10 a 20 quilômetros de altura. Medidas da carga elétrica em nuvens de tempestade indicam uma distribuição de carga semelhante, a grosso modo, a esta vista ao lado. O topo da nuvem é carregado positivamente e a base, negativamente.

As cargas negativas concentradas no pé da nuvem induzem cargas positivas no solo, abaixo delas. Entre a nuvem e o solo podem surgir diferenças de potencial elétrico da ordem de milhões de volts. É aí que se dão algumas das descargas elétricas que chamamos de raio.

A questão importante, nessa altura de nosso relato, é: como e por que as cargas se separam na nuvem de tempestade? Pois é, isso ninguém ainda sabe responder direitinho. Vários palpites já foram dados, é claro, alguns mais felizes que outros. Um dos melhores foi apresentado pelo físico Charles T. R. Wilson, o mesmo que inventou a câmara de nuvens para observar partículas sub-atômicas. Aliás, também foi dele a idéia de que as tempestades funcionam como baterias para manter carregado o condensador planetário.

Imagine uma gota de água no interior de uma nuvem, caindo por gravidade. A figura mostra essa gota com um “pequeno” exagero no tamanho. Como a gota está na presença de nosso conhecido campo elétrico de 100 V/m, haverá alguma separação de cargas dentro dela. A gota fica polarizada, com a parte de cima negativa e a de baixo, positiva. Na queda, a gota vai encontrando alguns dos tais íons positivos e negativos que existem na atmosfera. Os íons positivos são repelidos pela frente de ataque da gota em queda, enquanto os íons negativos são atraídos. Desse modo, à medida que cai, a gota vai acumulando cargas negativas e levando-as para a base da nuvem. Por consequência, a parte de cima da nuvem fica cada vez mais positiva.

O problema com esse modelo é que a carga total envolvida em uma nuvem de tempestade é muito grande e, aparentemente, o número de íons disponíveis não é suficiente para justificá-la. Na tentativa de salvar o modelo, Wilson e vários outros inventaram alguns truques mais ou menos engenhosos. A verdade, no entanto, é que ainda não existe um modelo inteiramente aceito e comprovado para o mecanismo de separação de cargas em uma nuvem de tempestade.

Essa é uma boa notícia para quem pretende, algum dia, ser um físico (ou física) da atmosfera. Talvez seja você que resolva esse quebra-cabeças. E, se for um físico (ou física) experimental, terá ocasião de fazer vôos de alta adrenalina pelo interior de nuvens turbulentas. Divirta-se.

Anatomia de um raio.

Na linguagem popular, relâmpago é o clarão intenso e raio é a descarga elétrica que causa o clarão. Adotaremos essa terminologia para descrever como é um raio. A maioria dos raios ocorre dentro da própria nuvem ou de uma nuvem para outra. Mas, vamos nos limitar a descrever um raio entre uma nuvem e o solo. E, já avisamos que esse, também, é um assunto de pesquisa em progresso, portanto, inacabado.

No final da página anterior tínhamos uma nuvem enorme com cargas separadas, negativas na base e positivas no topo. A presença dessas cargas negativas na base da nuvem induz uma carga positiva no solo, resultando em diferenças de potencial de milhões de volts entre a nuvem e a terra. Uma voltagem tão alta pode romper a capacidade de isolamento do ar (chamada de “rigidez dielétrica”) fazendo com que elétrons, cargas negativas, comecem a se mover da nuvem para a terra. A figura abaixo mostra uma seqüência do que acontece nesse momento.

Os elétrons se movem na direção do solo em uma sucessão de passos, cada um com cerca de 50 metros. Esse percurso em zig-zag é chamado de “líder escalonado”. “Líder” porque abre caminho para outros elétrons e “escalonado” porque é uma seqüência de degraus. A velocidade de deslocamento desses elétrons é muito alta, da ordem de 100 km/s. Alguns trechos podem se separar do trajeto principal, formando ramificações. Todo esse processo é extremamente rápido e praticamente invisível, pois a luminosidade do líder é baixa.

Quando a ponta do líder chega a uns 20 metros do solo, uma descarga, chamada “descarga de conexão”, inicia-se de algum local pontudo no solo e fecha o circuito, formando um “fio condutor” que liga a terra à nuvem. As cargas negativas presentes no líder movem-se, então, em grande velocidade para o solo. As mais próximas do solo dão início à descarga e o processo todo se propaga às partes superiores com uma velocidade incrível. Um belo e apavorante risco luminoso corre do chão para a nuvem, mas, o processo é tão rápido que vemos todo o raio de uma vez. Observe que os elétrons movem-se de cima para baixo no canal aberto pelo líder enquanto a região de alta corrente e luminosidade sobe pelo canal. O ar em redor do canal luminoso é subitamente aquecido e se expande com violência. O som dessa expansão é o que chamamos de trovão.

Depois dessa descarga inicial, outras descargas secundárias costumam ocorrer, aproveitando o mesmo caminho aberto pelo líder. São de menor intensidade e ocorrem depois de um tempo tão curto que parecem ser um único raio. Só com câmeras de alta velocidade é possível distinguir as várias descargas.

A seguir, vamos falar de algumas verdades e mentiras relacionadas com raios e tempestades.

Fatos e mitos sobre raios e tempestades.

Raios nunca caem duas vezes no mesmo lugar.

Grande mentira. Pelo contrário, raios adoram cair várias vezes no mesmo local. Aquele horrível mastro de bandeira que existe em Brasília, no meio da Praça dos 3 Poderes, já foi atingido por raios inúmeras vezes. Infelizmente, resistiu. Como vimos antes, a “descarga de conexão” costuma se iniciar em algo pontudo que se destaca da planura ao redor, como um prédio, uma árvore ou um peladeiro de campo de várzea. Na Idade Média era costume tocar o sino das igrejas durante as tempestades, para afastar os maus espíritos. Muito monge sineiro morreu por causa desse costume. Se você for surpreendido por uma tempestade no meio do campo aberto, nunca procure abrigo sob uma árvore isolada. Melhor deitar no chão e curtir um banho de chuva e lama.

É perigoso falar no telefone durante uma tempestade.

A verdade é que muito pouca gente morre atingido por raios se estiver dentro de casa. Mas, uns poucos azarados morreram porque estavam no telefone quando um raio atingiu suas casas e propagou-se pela fiação. Portanto, se a tempestade lá fora estiver mesmo braba, use o celular. Seguro morreu de velho.

Contando os segundos entre o relâmpago e o trovão dá para saber a distância do raio.

Dá, mais ou menos. A velocidade do som no ar é cerca de 330 metros por segundo. Portanto, conte os segundos desde o instante do relâmpago até ouvir o trovão, divida por 3 e terá a distância aproximada até o canal do raio, em quilômetros.

Depois da trovoada, sempre vem uma forte chuva.

É verdade, embora possam haver chuvas fortes sem trovoadas. Um modelo do físico atmosférico Bernard Vonnegut, irmão do famoso autor americano Kurt Vonnegut, sugere que grandes gotas de água se formam em torno do canal de descarga elétrica dentro da nuvem. Esse modelo é plausível mas ninguém ainda conseguiu comprová-lo experimentalmente, em razão das óbvias dificuldades de testá-lo.

Bem, paramos por aqui nosso relato que se iniciou com um trecho de Euclides da Cunha e será finalizado com uma citação, livremente adaptada, do físico americano Richard Feynman.

“Sabe-se, há muito tempo, que objetos altos são atingidos por raios. Artabanis, conselheiro de Xerxes, dando recomendações ao rei persa sobre um ataque aos gregos, disse o seguinte:
‘Veja como Deus, com seu raio, sempre golpeia os maiores animais e não se importa com os menores. Como também seus raios sempre caem sobre as casas e árvores mais altas. Desse modo, simplesmente, ele adora esmagar tudo que se mete a besta’.

Você pensa, agora que leu esse relato sobre raios, que sabe mais sobre o assunto do que Artabanis sabia, 2300 anos atrás? Não se meta a besta. Você sabe o mesmo, só que menos poeticamente.”

REFERÊNCIAS:
The Feynman Lectures on Physics.
Volume II, Cap. 9.
Adisson-Wesley, 1969.

All About Lightning.
Martin A. Uman.
Dover Publications, 1971.

Página do Grupo de Eletricidade Atmosférica do
Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (INPE):

Página da NASA sobre tempestades.

Essas páginas podem já não estarem na net.

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